ando o bastão
Quem tem amigos como Cyro, Gustavo Borja Lopes e outros mil, tem também direito à gripe e folga sem dívida para com os leitores. …
Quem tem amigos como Cyro, Gustavo Borja Lopes e outros mil, tem também direito à gripe e folga sem dívida para com os leitores. É o caso deste texto prenhe de amor. Boa leitura.
Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
(Resíduo, Carlos Drummond de Andrade)
COMEMORAÇÃO
A ESCRIVANINHA DE MEU PAI
Por Cyro Del Nero
Levei até meu analista um fato - e eu já tinha 40 anos - ocorrido em minha juventude.
Eu sempre estive curioso pela escrivaninha de meu pai. Era uma daquelas que têm um tampo de madeira que corre e fecha a mesa e seus escaninhos. Sempre tive curiosidade pelo conteúdo que eu apenas entrevia e que meu pai defendia abrindo a escrivaninha para um rápido trabalho e então ele, imediatamente, a fechava.
Não resistindo, compulsivamente, um dia resolvi violar a escrivaninha secreta de meu pai. Com uma faca, levantei com facilidade o seu trinco e fiz correr a tampa abrindo para mim os seus segredos. Descobri que os ricos escaninhos guardavam, além de cartões, fotos e papéis, pequenos objetos que me pareciam fantásticos, como meia dúzia de cartuchos vazios de balas de rifle que, certamente, ele guardara desde a Revolução de 1932, quando saíra fardado para uma aventura nunca imaginada. Havia ainda pequenos objetos, como um estranho anel, caixinhas apenas recheadas de agulhas e grampos, um pente feminino de marfim com um ornato barroco, cartas com selos de impérios que eu desconhecia, estampilhas, um velho canivete, uma pedra, uma espátula dourada, um broche antigo, cartões-postais com imagens da França e de Portugal, uma moeda chinesa, um pequeno frasco de um líquido azul com um rótulo em alemão.
Afinal, que relação amorosa meu pai tinha com aquela coleção? Por que o segredo?
Contei isso para meu analista, Horus Vital Brasil, e ele me perguntou algo que resume a aventura humana.
- Cyro, você queria saber se havia amor antes de você?
Todas as circunstâncias nos são inéditas e é necessário saber a origem e o porquê desse desconhecido que chamamos Destino ou simplesmente Existência, e se há amor que os sustente. Isso resume a aventura humana.
Imagino o homem primitivo sem uma sociedade na qual espelhar-se ou poder inquirir. O ineditismo das revoluções físicas da Terra - explosões vulcânicas, maremotos, raios e relâmpagos - durante as quais, no primeiro momento, esse homem deve ter feito gestos nascidos da ignorância e do susto. Gritou em diversos tons - e gerou para os séculos vindouros a música; saltou e correu de medo - gerando para o futuro a dança - e criou uma liturgia quando sentiu que alguém anterior a ele devia estar por trás de todas as coisas.
E imagino que, muitas vezes atônito, se perguntou se tudo aquilo continha uma salvação, um prêmio, um calor afetivo, se tudo aquilo continha nos seus gestos sinais mensageiros de amor por ele.
Talvez ele tenha reconhecido alguns sinais? durante a Primavera.
Uma de nossas essências é o ineditismo de nossa existência e muitas vezes na juventude até duvidamos ter nascido daquele casal que se diz ser nossos pais. Muitos duvidaram e procuraram o que supunham ser um destino correto onde houvesse amor.
Édipo o fez e estava certo: eles não eram seus pais e, em sua procura, foi castigado mesmo sem ter culpa. A falta de amor que estava em sua origem colocou-se contra ele.
É necessário sentir que, diante de tudo e apesar de tudo, havia amor antes de nós. Isso é uma alegria perene, uma bagagem feliz.
O aparecimento de uma imprevista Primavera, prêmio amoroso universal, pode nos ajudar a receber e distribuir amor durante a nossa existência.
Creio-me abençoado e, em muitos momentos difíceis ou gratificantes, lembro-me disso, e tenho a certeza de que essa ideia ou lembrança me envolve cosmicamente. E imediatamente sinto uma confirmação, uma resposta.
Sim, sou herdeiro: havia amor antes de mim.
Há atitudes até mesmo profissionais de alguém - por exemplo - que se torna um antiquário e busca no ado das coisas belas o amor que as criou. O que então se torna a resposta à pergunta que ele faz sobre a existência do amor antes dele.
Nota-se, com frequência, que a escolha de um ofício é uma herança amorosa ou a procura dela e, muitas vezes, podemos declarar essa herança em uma obra poética - ou reclamá-la.
O amor herdado é algo muito mais rubro e tépido do que o sangue. E também pode ser nosso testamento.
Eu procurei saber dele na escrivaninha de meu pai.
22 de agosto de 2009
Quando se comemoraria o 109º aniversário de meu falecido pai.
Cyro del Nero