Afinal, Ovalle!

Quiseram os fados que esse título ? Afinal, Ovalle! ?, que é o primeiro e único título desta crônica que sofreu dois adiamentos, ganhasse …


Quiseram os fados que esse título - Afinal, Ovalle! -, que é o primeiro e único título desta crônica que sofreu dois adiamentos, ganhasse duplo sentido.


De algumas conversas com Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e, principalmente, Otto Lara Resende, fiquei sabendo um pouco - muito pouco - dessa figura instigante dos meados do século ado, participante da inteligência e das artes do Rio de Janeiro.


Antes deste adendo, a crônica começava assim:


"Quem um dia vai refazer os os de Jayme Ovalle e identificar as numerosas marcas e impressões digitais que deixou neste mundo, no Rio, em Nova York , em Londres?"


Essa pergunta feita pelo amigo de Ovalle, Otto Lara Resende, em 1980, foi respondida agora, 28 anos depois.


Hoje, segunda-feira, 11 de agosto, quase meio-dia e meia, dei uma travada no trabalho e fui refrescar a cuca. 


Lembrei-me do programa de literatura "Espaço Aberto", onde Edney Silvestre toda semana entrevista alguém da área e sintonizei no canal Globo News, que tem a competente direção de minha ex-colega de TV Globo Alice Maria.


Gratas surpresas, entre as quais uma referência a Vinicius de Moraes, cujo reencontro no Antonio"s, 11 anos depois de desfrutar uma noitada na casa do poeta em Montevidéu, ei a ser, para ele, o Almeidinha.


O entrevistado do Edney era o jornalista Humberto Werneck que lançou o livro O Santo Sujo - A vida de Jayme Ovalle.


Na crônica "Desabafo" aqui publicada em 5 de junho de 2006, contei que, numa mesa do Antonio"s com alguns jornalistas, pedi ao escritor Antonio Torres que, na sua colaboração para o meu livro sobre aquele bar e restaurante, iluminasse bem o perfil de nosso amigo comum já falecido Irineu Garcia: "o Ruy Castro fez um retrato pequeno do Irineu. Precisamos mostrar o Irineu no seu tamanho original. Aliás - disse -, a gente precisa registrar tudo para que não se repita o que aconteceu com? aquele que foi amigo de uma geração toda, mas de quem se sabe muito pouco? (branco total no nome da personagem)? como era o nome dele? O autor de "Azulão"? Ninguém conseguia se lembrar. Desisti?"


O nome que no momento ninguém lembrava era o de Jayme Ovalle. Ainda não li o livro, já encomendado, mas a entrevista de Werneck e alguns sítios na Internet alimentam esta crônica.


O entrevistado foi fundo na vida e na "não obra" desse funcionário público federal exemplar e boêmio também exemplar.


 "Não obra" fica por conta da entrevista na qual Werneck declarou ser o compositor e poeta um criador "inconcluso", mas alimentador de idéias para grandes nomes da nossa história artística e literária, um ser mágico que "dialogava com Deus de igual para igual", assim como dialogava com uma pomba que o visitava diariamente na janela de um quarto de hotel na Avenida Rio Branco e por quem se apaixonou, não sei se antes ou depois de sua outra paixão por um manequim de vitrine. Mas já sei que ele chamava Deus de Neguinho.


Essas manifestações eram ou não movidas a muito álcool, mas certamente há episódios e hábitos que remetem mais a um extraterrestre que a um ser prosaico como eu e outros bilhões. Nunca fixei meus cabelos com graxa de sapato!


Essa fascinante figura, que nasceu em 5 de agosto de 1894 em Belém do Pará, aos 20 anos já era carioca, como se dizia, e nesta cidade entrou para a eternidade em 1955 sem jamais escrever uma única linha de sua autobiografia batizada como História de São Sujo. Conclusão: a grande obra de Ovalle acabou sendo sua própria vida.


O livro de Werneck tem a sua maior importância no fato de tirar uma pessoa como coadjuvante da nossa história cultural do século XX e colocá-la como um de seus expressivos protagonistas.


Bom tocador de violão e de piano, Ovalle parou na sua 33ª composição por considerar "a idade de Cristo" de bom tamanho. Entre elas, "Azulão" e "Modinha", com letras de Manuel Bandeira, são muito conhecidas e podem ser ouvidas na Internet com intérpretes de peso. "Azulão", inclusive, foi divulgada, além do Brasil, na América do Norte e Europa pela nossa Bidu Sayão.


Ligado ao mundo das artes, era amigo de Augusto Frederico Schmidt, Di Cavalcanti, Drummond, Fernando Sabino - de quem foi personagem no livro Encontro Marcado -, Paulo Mendes Campos e de Villa-Lobos. De Bandeira ganhou um "poema exclusivo":


P oema só para Jayme Ovalle


Quando hoje acordei, ainda fazia escuro


(Embora a manhã já estivesse avançada).


Chovia.


Chovia uma triste chuva de resignação


Como contraste e consolo ao calor tempestuoso da noite.


Então me levantei,


Bebi o café que eu mesmo preparei,


Depois me deitei novamente, acendi um cigarro e fiquei pensando?


- Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei.


  Conta Werneck que a maior parte dos poemas Ovalle escreveu em inglês, entre 1933 e 1937, quando viveu em Londres transferido pela Alfândega brasileira, da qual sempre foi funcionário dedicado.


Deixou frases registradas por outros:


O arinho é o soneto de Deus; o silêncio das coisas tem um sentido; o suicídio é um ato de publicidade, a publicidade do desespero.


Quando, em 1955, resolveu ir conversar com Deus "cara a cara", sonegou de uma boa parcela da inteligência o seu gratificante convívio.


E, surpresa (!), fiquei sabendo de sua mania por diminutivos: "Deixa eu usar o meu lutinho!", disse certa vez, de preto, a Bandeira que, conforme Werneck, adotou esse jeito de falar até na sua obra: ("Meu Jesus Cristinho!").


E fiquei sabendo, também, que o uso do diminutivo, "marca" de Vinicius de Moraes, foi hábito adquirido pelo poetinha na convivência com Ovalle.


Então, fico sabendo que este meu Almeidinha procede mesmo da boca desse, afinal, Jayme Ovalle.


Inté.



***


O Santo Sujo - A vida de Jayme Ovalle


(Humberto Werneck - Editora: Cosac Naify - 400 páginas)

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Autor
Mario de Almeida é jornalista, publicitário e escritor.

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