A velha leitora
A cena ficaria melhor se enquadrada por uma câmera. Mas vou tentar descrevê-la, assim como o impacto que me causou. Era a porta da …
A cena ficaria melhor se enquadrada por uma câmera. Mas vou tentar descrevê-la, assim como o impacto que me causou. Era a porta da sacada lateral da parte de cima de uma casa antiga, dessas casas com parquê de motivos geométricos, onde funciona uma plotadora. O dia era de chumbo, de frio repentino, embora anunciado, que se seguiu ao calorão desta semana. A visão que se tem da porta da tal sacada é destas coisas deprimentes: a parede de um edifício construído quase junto, com a área de serviço sórdida, exibindo uma tábua de ar roupas com pano queimado, parecendo sujo, a vassoura encostada num canto, uma plantinha semimorta na janela basculante.
Mas o que vi me deixou parada, viajando na cena.
Ao lado da área de serviço manchada de mofo, havia uma janela. Ampla. Com venezianas, coisa que eu acho fundamental em qualquer janela - abomino estas persianas de plástico que sobem e descem e fazem as aberturas parecerem boca banguela, sem graça, sem moldura.
Então, havia a janela com venezianas que um dia foram cor de gelo, agora são encardidas, e estão caídas para o lado. As venezianas estavam totalmente abertas e as vidraças, de guilhotina, fechadas. Uns três adesivos estavam colados pelo lado de dentro das vidraças que deixavam ver, de forma muito nebulosa, que, na parede de fundo do apartamento, havia quadros.
Um lustre de vime, de cor natural, com lâmpada amarelada e fraca, iluminava o ambiente. Mais para dentro, meio no escuro, havia uma mulher, de seus 50 anos, sentada, de frente para a janela, eventualmente conversando. E, bem junto à janela, quase de costas para a rua, havia uma mulher de cabelos prateados.
Ela segurava, com as duas mãos, que revelavam dedos nodosos mas pele lisa e boa, um livro.
Um livro quase de bolso, com letras miúdas, páginas de papel branco.
A mulher que lia usava óculos presos a um cordão preto, que descia pelo pescoço até onde se via do colo.
Ela virava o livro para a luz que vinha da rua e, do lugar de onde eu a via, parecia que ela adorava o livro como se adora uma divindade, um amuleto que se ergue para melhor irar ou obsequiar.
Ela lia e eu me encantava com o quadro que via naquela manhã cinzenta. Várias teorias me visitaram: a mulher seria uma antiga professora aposentada, talvez de português, morando com a filha. Seria amante da literatura que, mesmo com os olhos cansados e a pouca luz da sala, não abandonava.
Ou, quem sabe, seria uma solteirona romântica que vivia suas fantasias através de edições açucaradas, histórias de princesas, de romances medievais.
Ou seria então?
De repente, a minha musa de idade avançada larga o livro e eis que ergue, com a mesma determinação que empunhava o misterioso livro, em direção à luz do dia, um exemplar da revista Caras! Que ela ou a folhear com interesse!
Não sei se me choquei mais com a quebra do clima de sonho e com a decepção por este ecletismo de leitura ou com a minha própria reação cheia de preconceitos: afinal, quem não gosta de ler uma fofoquinha sobre a vida das celebridades? Qual a razão para a velhinha da minha manhã não gostar desta leitura de entretenimento?
Mas, o melhor estava por vir: ela simplesmente, naqueles 30 minutos em que esperei por uma plotagem, alternou, mais de uma vez, os dois objetos de leitura, com um ar de total indiferença, como se o livro fosse continuidade da revista e vice-versa.
Nunca vou saber quem era aquela mulher, qual o nome do livro que lia, do que tratava a leitura, se ela gosta de ficção ou de biografias, tampouco o que fez ou faz na vida. A pessoa real, aliás, não me interessa.
Fico com a pessoa de sonho que me ajudou a ar, mais rapidamente, minutos de uma manhã de chumbo, triste, sem graça, me obrigando a tirar o pé do real e a exercitar minha imaginação, de há muito desbotada como as venezianas que a emolduravam.