A vaidade dos esqueletos

Pois então: viramos celebridades mundiais graças a uma menina de 40 quilos que morreu há pouco, em São Paulo, tão magra que o corpo …

Pois então: viramos celebridades mundiais graças a uma menina de 40 quilos que morreu há pouco, em São Paulo, tão magra que o corpo foi, aos poucos, se comendo a si mesmo. A menina se foi, deixando uma mãe desatinada chorando diante de câmeras de televisão. Se comover, diante disso, é como uma obrigação. Se indignar é mais que isso - é questão de sobrevivência da espécie. Como se não bastasse toda a violência em volta, os medos que temos a cada saída de casa de um dos rebentos para qualquer voltinha na esquina (leiam a crônica da Márcia Martins aqui no Coletiva. É bem o que ela descreve) e ainda temos de encarar este moedor de carne que é o tal mundinho fashion mastigando nossos jovens e cuspindo os ossinhos.


Mundo fashion que, por sua vez, é cretinamente alimentado pela mídia, em todas as suas frentes. Os noticiários, desde a morte da menina por complicações decorrentes da anorexia, estão batendo, diariamente, na questão das exigências da indústria da moda em relação aos seus cabides humanos que desfilam modelos que mal caberiam numa criança bem nutrida de 9 anos. Pensem bem: manequim 34 é coisa de seção infantil de loja! E ouvi uma moça chamada Lílian Pacce, "editora de moda" do canal GNT, repetir e repetir que a semana de moda de Barcelona, que teve o bom senso de exigir garotas menos esquálidas, era um evento secundário e que este tinha sido apenas um lance de marketing. E que os criadores de moda têm o direito, ó supremos seres, de verem suas roupinhas estrear num corpinho quase infantil!


Mas, deixemos a senhora Pacce - com seu aspecto cadavérico - chiando no ar e vamos tentar entender este horror do qual a "poderosa" formadora de opinião é parte integrante. Lembro que, em 1997, quando eu estava em Paris, me surpreendi com uma campanha de mulheres que exigiam ser posto abaixo o tal critério da magreza para arelas e quetais. O cartaz, afixado numa loja do Carrefour do Louvre, exibia uma figura mais rotunda e mais velha. Claro que a campanha foi pro brejo, afinal a cidade-alvo da gurizadinha iludida com os holofotes e que acha que vai dar sorte como la Bündchen não iria trocar suas secas de pescoço espichado por gorduchas comedoras de camembert. E tudo continua como antes.


Há uma quase pedofilia neste mundo da moda, na medida em que ele digere gente cada vez mais jovem. Há meninas de 13 anos desfilando, exibindo bunda e seio como se fosse a coisa mais normal do mundo. Elas querem ser top models, mesmo que, logo adiante, possam cair até na prostituição por falta de orientação e desespero! E as mães incentivam. As tias acham incrível e, pior, as Lílian Pacce da vida e toda a mídia ficam neutralizando quem tem bom senso dizendo, como víboras, ao ouvido das garotinhas suburbanas: não comam, não comam, não comam! E as garotinhas, quando se dão conta, não sabem mais comer. Se conseguem vencer a anorexia e a bulimia sem cair na cocaína e nas boletas para ficar acordada, são realmente sobreviventes. E estão aí Naomi Campbell, uma senhora barraqueira drogadita assumida, e Kate Moss, que já perdeu a noção de tudo, mostrando o que é cair na vida por causa da fama e da grana.


Querendo ou não, são exemplos para milhões de botocudinhas que acham que ser "descoberta" por um booker é o máximo na vida. Sem estudar, sem ter outra referência a não ser os nomes das colegas e dos costureiros, estas pobres coitadas vão ganhar, quem sabe, muito dinheiro e, também quem sabe, casar com algum babaca velho e rico disposto a exibir sua conquista nas rodas mundanas.  Como se proliferam, não poderão ser lembradas uma a uma, e vão morrer sendo eventualmente lembradas por uma foto perdida numa revista jogada num consultório. Mamãe terá suas mordomias, a cidade natal erguerá monumentos.


De concreto e importante, nada. Quem se importa? O negócio é vender carne no açougue. Açougue que, pelo produto que oferece, tem mais ossos que carne para vender.

Autor

Jornalista formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Maristela Bairros já atuou como redatora, repórter, editora e crítica de teatro nos principais diários de Porto Alegre, colaboradora de revistas do Centro do País e foi produtora e apresentadora nas rádios Gaúcha, Guaíba AM, Guaíba FM e Rádio da Universidade, assessora de imprensa da Secretaria de Estado da Cultura e da Fundação Cultural Piratini. É autora de dois livros: Paris para Quem Não Fala Francês e Chutando o Balde, o Livro dos Desaforos, ambos editados pela Artes & Ofícios.

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