A ressurreição de Camus

Quase duas horas da tarde. O dia: 4 de janeiro de 1960. Um carro em alta velocidade sai da pista e se choca contra …

Quase duas horas da tarde. O dia: 4 de janeiro de 1960. Um carro em alta velocidade sai da pista e se choca contra uma árvore, perto da cidadezinha de Villeblevin, na França. Assim foi a morte violenta, há 46 anos, do escritor francês-argelino Albert Camus. Ele tinha 47 anos.


Autor de romances famosos, hoje pouco citados - "O Estrangeiro" (1942) e "A Peste" (1947) - e de vários ensaios filosóficos na linha do Existencialismo, Camus recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1957. Dentro do carro onde morreu, foi encontrado o manuscrito inacabado de "Le Premier Homme", uma obra autobiográfica, só publicada em 1994.


Uma pequena nota foi distribuída, no final de semana ada, por uma das agências internacionais de notícias. Aqui, no Brasil, acredito que o jornal "O Sul" (edição do dia 13/08/2006)  tenha sido um dos únicos a reproduzir o telegrama. Diz mais ou menos o seguinte:


"O presidente norte-americano George W. Bush está lendo um dos livros mais famosos do escritor existencialista Albert Camus, "O Estrangeiro".
No ano ado, em reunião com líderes da Europa,
Bush já havia citado o autor francês. O relato é
do atual porta-voz da Casa Branca, Tony Snow.
Bush, em férias de verão em seu rancho no Texas,
dedica parte do tempo ao romance."


Relembrar, ou até mesmo ressuscitar Camus, leva este colunista bem longe no tempo ado. Direto para meados do século 20.  Recordo de uma cerimônia solene no Salão Nobre da Faculdade de Letras da Universidad Nacional Mayor de San Marcos, por sinal a mais antiga instituição acadêmica das Américas. Era um começo de noite, quente, úmida, típica dos verões de Lima, a capital do Peru. Ali, no dia 7 de fevereiro de 1961, os delegados estudantis perante o Conselho Universitário e o professor Armando Zubizarreta prestavam a homenagem a Albert Camus. E marcavam o primeiro ano após a sua prematura morte. Este colunista vivia então em Lima. Do final de 1960 até o final de 1961, estive "on the road", seguindo a aventurosa trilha dos mochileiros daquela época. (Esta já é uma outra história).


Mas, então: longe de qualquer unanimidade crítica, bem ao contrário, Camus foi amado e antipatizado por seguidores e críticos espalhados pelo mundo. Da França à América Latina, chegando até aos EUA. E quando falo dos anos 60 do século findo, aí se destaca a importância, na época, do pensamento crítico e racional francês. E suas inúmeras e ásperas polêmicas. Uma dessas marcantes disputas colocou de um lado, Camus. E do outro, o grande intelectual militante Jean-Paul Sartre. Ambos companheiros de ideais.


Na revista liberal-esquerdista norte-americana The Nation, edição de 5 de abril de 2004, o articulista Russell Jacoby faz um resumo da polêmica Camus versus Sartre, sob o título "Amigos Eventuais" (Accidental Friends). Com o característico menosprezo norte-americano pelo pensamento crítico da França - menosprezo, aliás, estendido a quase todos os intelectuais dos demais países -, Jacoby encerra sua argumentação desta maneira:


Se Sartre e Camus brigaram, eles brigaram acima de tudo sobre os temas daquele momento. Mas concordaram nesse ponto: a necessidade de enfocar a temática política da época. E conclui o articulista do The Nation: "Os intelectuais ses que sucederam Sartre e Camus - os Althussers, os Lacans, os Foucaults, os Derridas - fracassaram na abordagem da Política com a mesma paixão e clareza. Voltamos, então, a Sartre e a Camus. Porque eles foram desbancados. Mas [também] foram imbatíveis".


Bem no começo, professando um existencialismo quase sempre negativo, da idéia matriz do absurdo da vida, Camus e Sartre conviveram em época de grandes paixões políticas. Sartre dá a partida existencialista com "A Náusea" (1938). E Camus replica com "O Estrangeiro" (justamente a obra de cabeceira, estes dias, do presidente dos Estados Unidos). O livro de Camus, de 1942, exprime um forte sentimento de desconforto de viver do personagem principal.


Obra curta, apenas 179 páginas na edição do Le Livre de Poche (Gallimard, 1959), deverá dar o que pensar a Bush, lá em seu rancho de Crawford. "O Estrangeiro" foi concluído quando Camus tinha apenas 29 anos. Mas Camus e Sartre eram também animais políticos, envolvidos com os acontecimentos de então, bem mais além de suas divagações filosóficas. Ambos militaram na Resistência sa e contra a ocupação das tropas nazistas. Com o final da II Guerra Mundial, em agosto de 1945, os dois experimentaram a celebridade. Reservada, naqueles dias, a escritores e diretores de cinema famosos. Ao contrário de nossos insípidos dias de hoje.


A notoriedade da dupla atravessou o Oceano Atlântico. E chegou à mídia norte-americana: em 1946, a revista "Vogue" exibiu fotos de Sartre e Camus. Um ano antes, a mesma publicação - dedicada à moda - fazia um perfil de Sartre. Na descrição da repórter, Sartre parecia o homem típico das barricadas durante a Insurreição de Paris.


Mas, em 1952, Camus e Sartre romperam. E nunca mais conversaram. A disputa aconteceu em torno de uma crítica da revista da esquerda intelectual, "Les Temps Modernes", criada por J.P. Sartre logo após o final da grande guerra. A resenha, de 21 páginas, demolia a obra "O Homem Revoltado" (ou "O Rebelde"), onde Camus explicitava seu pensamento antimarxista. E ainda convocava seus iradores e leitores à revolta. Mas a uma revolta metafísica.


Produzido ao longo de seis anos, após muitas incursões de Camus às áreas da Economia, História e Filosofia, "O Rebelde" foi, ao mesmo tempo, um comentário e também uma extensão de sua novela "A Peste". "Escritor e moralista, na grande tradição sa, Camus tinha se transferido do que chamava de uma filosofia do Absurdo para a Revolta. Seu ´ciclo´ do Absurdo era carregado de pessimismo. Agora, [com "O Rebelde"], estava buscando ultraar este período", diz Olivier Todd, biógrafo de Camus, na introdução à versão em inglês do "L´Homme Revolté".


Os tempos frenéticos que se sucedem neste século 21 são, de certo, um tanto quanto impermeáveis a polêmicas deste quilate. O tempo parece quase inexistente. Um tempo quase sempre escasso, para todos nós. Mas as idéias e os livros permanecem. Esquecidos, por vezes, até por décadas ou séculos, quando consultados desvendam questões permanentes, como algumas que restaram da polêmica Sartre versus Camus. É só ler e conferir. Um exemplo: Sartre estava com razão na questão argelina. Camus, nascido na então colônia sa na África, não tinha razão. Mas e nos demais pontos? As questões permanecem aí, vivas. E à espera de interessados.

Autor

Com agens pelos mais importantes veículos de comunicação de Porto Alegre, o jornalista Renato Gianuca tem no currículo duas vivências internacionais. Ficou na Europa cerca de um ano, no período entre meados de 64 e agosto de 65, devido ao golpe militar. Em 1973 estava lá de novo, e desta última agem tem pelo menos dois registros importantes: enviou de Paris para o Correio do Povo, onde trabalhava antes de viajar, reportagem sobre o Acordo de Paz no Vietnã, e, da Itália, uma longa entrevista com o craque de futebol Mazzola. Em 1974, de volta ao Brasil, trabalhou no Diário de Notícias, no Hoje e, no ano seguinte, começou a trabalhar em Zero Hora, onde foi redator da área internacional, subeditor e editor do noticiário nacional, articulista de temas ambientais e culturais. Saiu em 1994 para trabalhar na Assessoria de Imprensa da Secretaria da Coordenação e Planejamento do Estado, onde permaneceu até 2002.

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