A quem pertence a liberdade II

Por José Antonio Vieira da Cunha

Vale voltar ao tema graças à repercussão e à polêmica provocadas pela pensata sobre o aplicativo Telegram, publicada aqui. No que denominei de resumo da ópera, a questão essencial consiste na imposição de se conter a plataforma enquanto seguir sendo conduto para manifestações de ódios e antidemocráticas sem assumir sua responsabilidade.

Pavel Durov é um dos bilionários do planeta Terra. Russo, ganhou a fortuna graças ao Telegram, que criou há menos de uma década e que o transformou em um novo Mark Zuckerberg. Uma reportagem da Wired mostrou que, tal como em uma seita, vive nos Emirados Árabes Unidos comandando ali um pequeno grupo de conterrâneos extraditados, programadores que seguem cegamente as ordens do "capo". 

É deste ambiente nocivo por natureza que os limites da liberdade de expressão são testados a todo momento - e violados e humilhados por manifestações de desinformação, ódio, racismo, homofobia, todas encaradas como absolutamente naturais pelo aplicativo. "Naturais", mesmo que haja manifestações incluindo o que se considera pornografia da vingança, aquela atitude execrável em que o integrante de um casal desfeito expõe fotos íntimas da pessoa que deixou de ser sua querida. 

Está lá no nosso principal livrinho, como diria Ulysses Guimarães, e com todas as letras: a inviolabilidade da intimidade, privacidade, honra e imagem das pessoas é um direito constitucional. Idem para a proteção da segurança e tranquilidade de toda a sociedade, princípio que será sempre ameaçado a cada vez que notícias falsas ou manifestações de desinformação encontrarem guarida para sua disseminação.

Não podemos ignorar nunca que a Constituição assegura a livre circulação de ideias, quaisquer que sejam, observando-se que há um limite muito claro para isso - não pode o exercício desta liberdade colocar em risco a integridade de qualquer cidadão. 

As plataformas digitais fazem parte hoje do nosso cotidiano, e por elas transbordam os relacionamentos entre pessoas e grupos, e com eles as polêmicas e seus exageros. O Telegram avançou de forma perniciosa neste espaço ao assegurar a seus usuários o direito de expressão sem limites, mesmo que eles o utilizem para manifestações anônimas ofensivas ou propagação impune de teorias da conspiração, campo explorado com competência pela direita americana e seus equivalentes no Brasil. (E vale repetir a lembrança de que, não por acaso, foi ali que os extremistas islâmicos encontraram espaço para sua pregação de ódio.)

A razão pela qual estes grupos que disseminam discursos de ódio preferem o Telegram sabe-se muito bem. É um canal que ignora a lei e dá mostras de que não tem satisfações a dar à Justiça ou à Sociedade; trata as autoridades judiciárias com solene descaso.

O que temos hoje é isso, um pretenso ideal libertário ostentado pela plataforma, o que fez dela campo fértil para a divulgação de conteúdos que ferem o senso comum, em episódios que incluem, acredite, exposição de fotos de pedofilia. 

A defesa dos princípios democráticos exige vigilância permanente, já ensinou Jefferson ao se referir explicitamente ao preço da liberdade. Então, não se pode ficar indiferente a desrespeitos, verdadeiros escárnios como estes alinhados aqui, sob pena de o sagrado princípio que assegura a liberdade ser ele mesmo sufocado. E exemplos disso, infelizmente, não faltam, como já se viu e sentiu em vários momentos da História. E não só de outros povos, mas especialmente a nossa. Nós não queremos o retorno a isso.

Autor
José Antonio Vieira da Cunha atuou e dirigiu os principais veículos de Comunicação do Estado, da extinta Folha da Manhã à Coletiva Comunicação e à agência Moove. Entre eles estão a RBS TV, o Coojornal e sua Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre, da qual foi um dos fundadores e seu primeiro presidente, o Jornal do Povo, de Cachoeira do Sul, a Revista Amanhã e o Correio do Povo, onde foi editor e secretário de Redação. Ainda tem duas agens importantes na área pública: foi secretário de Comunicação do governo do Estado (1987 a 1989) e presidente da TVE (1995 a 1999). Casado há 50 anos com Eliete Vieira da Cunha, é pai de Rodrigo e Bruno e tem cinco netos. E-mail para contato: [email protected]

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