A primeira vez nas asas da Varig

Tudo que nos acontece pela primeira vez tem um gosto especial e um sabor inexplicável de inesquecível. A experiência do inédito é estimulada desde …

Tudo que nos acontece pela primeira vez tem um gosto especial e um sabor inexplicável de inesquecível. A experiência do inédito é estimulada desde quando somos pequenos. Ao engatinhar sob os aplausos entusiasmados dos pais, ao dar os os iniciais no trajeto da vida, ao balbuciar aquilo que os adultos classificam como gugu-dadá, ao traçar as primeiras letras tremidas e ler as palavras misteriosas. Na adolescência, a menstruação chegando, o beijo roubado na frente de casa, o primeiro fora e outras coisas mais. Mais tarde, o emprego, a maternidade e uma rotina em que terminamos memorizando sempre a primeira vez.


Depois, na fase mais do que adulta, já não compartilhamos um conjunto tão extenso de situações vividas pela primeira vez. Acumulamos as lembranças. Nos apropriamos do ado. O exercício é de lembrar das vezes pretéritas, pela primeira vez. E como é bom ter um ado. Recordar não precisa, necessariamente, estar ligado à melancolia ou tristeza. Muitos anos podem ter me atropelado, mas ainda relembro, com ternura indescritível, a vez em que fiz minha estréia na sétima arte, no antigo cinema Vitória, hoje reformado, do primeiro encontro com um namorado, em plena luz do dia, na lancheria de uma loja famosa no centro da cidade. 


É evidente que determinadas ocasiões eu nem preciso citar, que não sou nem bobinha para entregar toda minha intimidade para vocês, ficaram cicatrizadas. São aquelas consideradas ritos de agem que funcionam como um atalho para a maturidade. Algumas como feridas mal curadas, outras como boas lições e ensinamentos. Penso, logo existo, e sou normal (ah, ah, ah..). Então, carrego comigo as lembranças que todos têm.


Mas tem sempre alguma lembrança que nos persegue e jamais nos abandona. Exercendo a profissão de jornalista, convivemos mais com o inesperado e o imprevisto, conseqüentemente, ficamos mais sujeitos às experiências marcantes. No meu caso, uma delas foi nas asas da Varig. A minha primeira viagem de avião ocorreu quando eu já trabalhava no Jornal do Comércio e fui escalada para fazer a cobertura de um evento financeiro em São Paulo. Foi quando eu descobri que as coisas mudam e que o mundo é pequeno nas asas da Varig. De "jeito e maneira" eu iria confessar aos colegas de outros veículos, todos tarimbados em viagens, que aquela era a minha primeira vez, compreendem?


Sem nenhum pecado, sem pavor, o medo em minha vida nasceu muito antes de embarcar no vôo. Não precisava contar aos colegas, loucos para pegar uma vítima, que fazia minha estréia aérea naquele momento. Meus pais, orgulhosos, resolveram me levar ao aeroporto, o que terminou por denunciar meu nervosismo pela primeira vez e fornecer aos colegas o ingrediente que necessitavam para o meu batismo de fogo. Amados e compreensivos, os quatro conhecidos jornalistas de economia de conceituados veículos aram o curto trajeto até São Paulo me paparicando e na terra da garoa não me esqueceram um só momento.


Hoje, decorridos alguns anos, peço emprestada a música do Milton Nascimento e Fernando Brant, "Conversando no bar", para dizer que a minha arma é o que a memória guarda dos tempos da Varig. Depois da minha estréia nos céus de brigadeiro do Brasil, muitas outras viagens se seguiram como jornalista, todas pela Varig. Uma delas, que marcou também a minha iniciação no mercado internacional, serviu para comprovar a importância da empresa nos ares do mundo. Ao fazer uma escala obrigatória em Tóquio, na volta de Taiwan, onde fui conhecer os mistérios ocultos da ilha capitalista, precisava me comunicar com o funcionário do aeroporto e meu inglês era péssimo. Para minha surpresa, no guichê da Varig, o atendente com traços nipônicos falava português.


Talvez essas lembranças tenham me invadido às vésperas de um provável novo leilão da Varig, na tentativa de que a empresa gaúcha não se enterre nas nuvens da má istração. Nas asas da Varig voaram os sonhos de milhões e milhões de gaúchos. A maior das maravilhas foi voando sobre o mundo nas asas da Varig. Em volta de muitas mesas de bares, velhos e moços vão continuar lembrando o que já foi. E a cerveja que tomam é apenas em memória dos bons tempos da Varig. 

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve agens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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