A praça não é do povo
Nada justifica a violência. Nem mesmo a ignorância ou a truculência de quem usa a força para camuflar a falta de inteligência ou incapacidade …
Nada justifica a violência. Nem mesmo a ignorância ou a truculência de quem usa a força para camuflar a falta de inteligência ou incapacidade de negociar. Nada abranda o peso de um espancamento ou interrompe o trajeto fatal de uma bala, perdida ou intencional. Nem mesmo os sentimentos ionais e cegos ou o caos urbano, que poderia servir de argumento para ações precipitadas da polícia ou dos cidadãos. Nada é mais chocante do que fotos de corpos de homens e mulheres agonizando no chão. E o sangue, escorrendo pela calçada em que o pedestre deve ar, misturando-se com o lixo, a indiferença e a indignação.
Não falo do desfecho do seqüestro da menina/adolescente Eloá, em Santo André (SP), ocasião em que a mídia, mais uma vez, esqueceu seu papel e abusou do poder. Não! Porque discorrer sobre o jeito estúpido de amar de Lindemberg Alves Fernandes, da ingenuidade da sua namorada de 15 anos, ou da atitude "supostamente" atrapalhada da Polícia paulista, causa uma dor pungente no meu coração materno. Lembro que não desgrudei o olhar da televisão no dia 17 de outubro. Enquanto acariciava os cabelos sedosos de minha filha Gabriela Martins Trezzi, que dormia uma sesta no meu colo, acompanhei o desenrolar do seqüestro.
Prefiro "ignorar" que mais um adolescente morreu, aos 18 anos, no fim de semana, em Porto Alegre, durante uma festa, e não se sabe ainda as circunstâncias do crime. Ou esquecer que a minha filha retorna, no entardecer, da aula de inglês por uma rua movimentada e com enorme circulação de veículos, nunca viu nenhuma autoridade que deveria lhe oferecer segurança colocada entre os poucos quilômetros que percorre até chegar em casa. Não faltariam, certamente, inúmeros fatos, somente ocorridos nos últimos dois meses, que justificassem a minha total repugnância aos atos brutais de violência, relatados no início da coluna.
A minha manifestação é motivada pelos incidentes entre uma tropa de choque da Brigada Militar e sindicalistas, bancários, professores, agricultores e estudantes, que resultaram, na quinta-feira, 16 de outubro, pelos dados da BM, em cinco pessoas feridas (três manifestantes e dois policiais militares). Os organizadores do movimento contrapõem, dizendo que 17 pessoas saíram feridas. O palco do espetáculo lamentável foi a Praça da Matriz, em frente ao Palácio Piratini, onde, acomodado em cadeira esplêndida, sossega um novo jeito de governar o Rio Grande do Sul. Foi o epílogo da Marcha dos Sem.
Novamente, prevaleceu o autoritarismo do governo estadual para calar as vozes dos manifestantes. E, por volta das 16h, as primeiras palavras de ordem ensaiadas pelos trabalhadores, estimulados pelo chamado do caminhão de som que tentava chegar perto do Palácio, onde estavam os dirigentes da Marcha, incomodaram o contingente estimado de 300 policiais fortemente armados. Sob os gritos de que "não somos bandidos, somos trabalhadores", e outros que incitavam o responsável pela BM com palavras pouco gentis, o batalhão, protegido por escudos transparentes da tropa de choque, mostrou que a "Praça não é do povo".
Seria mais um confronto entre os que reivindicam e os que detêm o poder. É parte da democracia, palavra ainda desconhecida de alguns. Seria apenas um novo episódio esmagando e pisoteando a sociedade civil, formada por cidadãos que ouviram dizer, no ado, que a praça é do povo. Seria mais um ato político, abençoado por Deus do alto da Catedral Metropolitana. Não fosse a inabilidade do comandante da BM que, sem conseguir silenciar o povo de forma pacífica, ordenou que os policiais disparassem bombas de efeito moral e tiros. Para mostrar que não existe repressão (hã???) o comandante atacou com violência.
Minutos antes, eu deixava o entorno acompanhada da Gabriela, e nós cruzamos com algumas bandeiras de movimentos sindicais e trabalhistas, homens e mulheres pedindo melhores condições de vida. Sei lá! Não prestei atenção. Até ver o coronel dando uma entrevista na TV Assembléia (sim, eu ei pelo canal) e dizer que considerou a ação da BM normal e que não aceitava contrariedade. Até ver umas fotos enviadas mostrando, inclusive, deputados sendo agredidos. Até analisar, mais uma vez, o silêncio oportuno da grande mídia. Até quando?