A Pequena Diferença

Os móveis todos saíram do lugar nos últimos sete dias. Meu rádio ficou mudo e minha televisão, sem cor. Remexi demais em gavetas que …

Os móveis todos saíram do lugar nos últimos sete dias. Meu rádio ficou mudo e minha televisão, sem cor. Remexi demais em gavetas que guardavam cenas do ado. Não me peçam para mudar. Estas manias que eu vou tentando disfarçar já me vestem tão bem. Mania de fingir que sou racional, forte, decidida. Mania de berrar aos quatro ventos que nada mais me abala, que a experiência de vida me ensinou a superar obstáculos. Mania de dizer que o sumiço daquela velha amiga não me afeta e mania de camuflar meus sentimentos para não parecer piegas e fora de moda.


Pois que se dane o mundo, que eu quero descer e enterrar essa fantasia do que aparento ser nas curvas da estrada de Santos, onde eu tento esquecer um amor que eu tive, e daí? Muito brega lembrar de uma canção do Roberto Carlos? Eu, decididamente, optei por mostrar-me como sou. Culpa da rotina da semana. Exatamente, como num calendário. De 6 de dezembro a 13 de dezembro, aram pela minha cabeça cenas de cinema tão estranhas e conhecidas. Cada dia teve um peso diferente, que somou no meu currículo de vida, mas também produziu momentos de saudade e melancolia.


Na terça-feira, 6 de dezembro, ao comemorar os 11 anos de minha filha, senti minhas costas curvadas, como se eu carregasse com o apagar das velinhas todo o peso do mundo. Ela já não consegue, embora tente, aninhar-se junto ao meu corpo para "puxar" o sono, como fazia quando era menor. Não acha tão natural que eu a acompanhe diariamente até a entrada do colégio. "Pode ficar me olhando da esquina", diz, para escapar do mico que é a mãe fazendo vigília. Juro por Deus, já dança com esse tal de "rock" (no caso, o funk). Abaixa o tom de voz quando fala ao telefone.


Vocês não vão acreditar. Parece que ela cresceu em dias, minutos. Tomou fermento, diriam os antigos. Está saindo, irremediavelmente, de dentro de mim, diria , uma mãe de caso com a realidade. Estou vivendo aquele terrível momento em que se vê que os filhos não são nossos. São filhos do mundo. E que Deus os abençoe. Mas não é esse mundo que ajudei a erguer tijolo por tijolo num desenho lógico para a minha filha. Então, alguma coisa não se encaixa. E descubro que ainda tenho muito que construir para me sentir em paz comigo mesmo e ser, enfim, uma cidadã que cumpre com seus deveres.


Na sexta-feira, 9, indescritível minuto de melancolia. Algo como: "tire o seu sorriso do caminho, que eu quero ar com a minha dor". Havia entrado naquelas lojas malditas de R$ 1,99 para comprar enfeites de Natal a fim de deixar que Gabriela montasse a árvore no final de semana. Até pensei que poderia, quem sabe, encontrar um espírito natalino, e colocar na cesta. Ufa, não está à venda. Na saída da loja no caminho da redação, o filho de não mais de cinco anos da índia vem me pedir um troco. "Tia, dinheirinho que hoje não comi nadinha. Minha barriga tá roncando", implora o danadinho, sabendo que eu deveria ter, porque ele sempre me vê ar sem sacolas.


A falta de dinheiro (porque realmente tinha deixado meus poucos reis na máquina engolidora do R$ 1,99) e a impotência em resolver a fome do pequeno índio me estragaram o início do final de semana. Que mundo injusto, quanta desigualdade e miséria. Ah, mas pensar nisso já me torna diferente. Tenho ainda um pouco de consciência. Eu me preocupo. Quanta prepotência. Não sei o que é mais hipócrita. Fazer como eu que considero um ato heróico me preocupar e não sair do lugar ou nem pensar em nada. E minha filha ainda pode montar árvore de natal e ganhar presentes. Quem esculpiu esse mundo?


Escolha múltipla. Não vale dizer que não tem nada a ver com isso. Que tava tudo armado e agora é ir tocando. Fala sério. Sei que é difícil itir que até que a história é perfeita para essa desculpa. Mas se cada um que pensasse assim, aproveitasse para ajudar um pouco, faria uma pequena diferença. E, da pequena diferença, a gente iria fazendo, de ano em ano, uma grande diferença. Até se chegar ao dia, talvez não ainda na geração dos nossos filhos, em que todos pudessem montar a sua árvore de natal. E eu não sentisse tanta vergonha de carregar enfeites de natal e não ter dinheiro para o índio fazer a primeira refeição do dia.

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve agens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

Comments