A paisagem vista da Feira
Estou na Feira do Livro, os jacarandás continuam florindo, o dia está belo e razoavelmente ável o calor. As ruas estão lotadas e as …
Estou na Feira do Livro, os jacarandás continuam florindo, o dia está belo e razoavelmente ável o calor. As ruas estão lotadas e as barracas, vendendo bem. Não me atrevo a ir até o cais, porque sei que ali é a lei da sobrevivência dos que têm realmente saúde, já que criança exige energia de sobra e a minha está na medida exata pra eu não travar o joelho.
Gosto de algumas coisas em especial nesta feira. O som do alto-falante, chamando para autógrafos é uma delas. É uma voz que parece vir do céu, tem a ver com o clima desta festa aberta apesar das arelas cobertas que nos protegem das chuvas - ou seja, pelo menos da chuva na cabeça, porque a água que empoça não tem jeito.
Já tive grandes experiências com a feira, alguns sustos, algumas alegrias, algumas surpresas. Vi autores medíocres ganharem imensas filas e gente premiadíssima ficar sozinha, triste, com caneta na mão, sem uma alma para lhe trazer um exemplar para autógrafo. Um ecumenismo só possível neste lugar e neste acontecimento.
Ainda acho que a feira está imensa demais, mas eu sou uma saudosista e os saudosistas não movem o mundo, como se sabe. Também me atrapalho demais com tanta palestra, tanto encontro, tanto autógrafo embora saiba que esta é a chance que muitos têm de ter seus 15 minutos de fama, nem que seja só no livreto da programação e na chamada do alto-falante.
É o jeitinho da feira na praça - tentar juntar o máximo que pode no mínimo de tempo e de local disponíveis. Lucram todos: promotores, autores, jornalistas, editores e leitores ou simples eadores das alamedas, sem falar nos botequeiros, donos de restaurante e, claro, pipoqueiros, vendedores de sorvete, quem tem vez e hora de comercializar seus produtos. Afinal, a feira é para vender, acima de tudo, embora a grande maioria lucre com a exposição de quem é e do que faz.
Há diversão além dos livros, do chope, da algazarra da gurizada, do petit gateau melhor do mundo no bistrô? Acho que sim: há uma predisposição para ser mais feliz quando se resolve vir à feira sem encargos de trabalho ou compromisso. Um certo descompromisso com a vida real, como se aqueles momentos de espiar balaios, de conferir quem está sendo entrevistado ou sentado diante de uma plaquinha com seu nome na Praça dos Autógrafos, de reencontrar quem não se via havia tantos anos, tudo isso é parte do clima da feira.
Do meu canto, na barraca da imprensa, diviso um naco de céu azul e um pedaço de palmeira, mais umas paredes do Memorial e um canto do Margs. Pelas janelas da direita de meu computador, o tronco largo de uma paineira emoldura banners que dizem que curtem e cuidam de Porto Alegre. Está começando a ventar, aquele vento que anuncia chuva, e chuva forte que sempre vem nesta época pra fazer sua colheita de flores roxas e amarelas e limpar as pedrinhas portuguesas do calçamento. Há um silêncio grande, aqui, agora, uma certa reverência quem sabe, diante de tanta sapiência acumulada em páginas e páginas impressas, comprimidas em capas coloridas, ilustradas ou não, empilhadas em minúsculas casinhas que, breve, não mais existirão.
Os livros não vendidos voltarão para as vitrinas, os depósitos, as prateleiras de editoras e livraras. Os autores continuarão sua saga, alguns incentivados por um possível sucesso criarão novas histórias para ganhar o direito de voltar à feira no ano que vem. Editores buscarão interpretar tendências para oferecer ao leitor o cardápio palatável que ele escolherá. Jornalistas retornarão à sua rotina nas redações. E os antes, a seus caminhos diários que até poderão incluir as alamedas da Praça da Alfândega, mas num cenário povoado por árvores, velhos prédios, jogadores de dama, engraxates, prostitutas e um que outro artesão desgarrado.