A graça de Jesus

Um Homem Anda Sobre as Águas, um programa humorístico sobre a vida de Jesus, foi suspenso na Holanda. Os argumentos dos que apoiam a …

Um Homem Anda Sobre as Águas, um programa humorístico sobre a vida de Jesus, foi suspenso na Holanda. Os argumentos dos que apoiam a censura são singelos: Deus é coisa séria, não se mistura religião com humor, é preciso respeitar a crença dos outros. Houve até quem achasse perigoso.
Se Deus não aguenta uma piada, de que Deus me hablas, muchacho? Este Deus não vale nada. Melhor procurar outro, tipo ser o primeiro a se espantar com as carolices. Pensando bem, uma guerra religiosa não a de uma carolice levada ao extremo.
Por que religião e humor não se misturam? A vida é uma mistura desavergonhada: dá o trágico e o cômico, o sublime e o ridículo, o belo e o feio, quase sempre no mesmo instante, na mesma coisa. Nós, sem saber o que fazer com a impureza dela, com o fato de que a Megan Fox também tem mau hálito de manhã, ou que se pode ter uma ereção num velório, ou que Shakespeare pode ter escrito seus melhores sonetos de amor no banheiro, ou que a princesa Diana também soltava puns (puns principescos, é verdade, mas não mais perfumados), tratamos de compartimentar tudo em gavetas higiênicas. Religião e humor não se separam simplesmente porque nada se separa - fora das mentes blindadas por dois dedos de testa.
É preciso respeitar a crença dos outros. Então respeitem a minha. Eu acredito piamente que tudo tem sua graça, inclusive Jesus. Ou você não acha engraçado ele amaldiçoar uma figueira porque a pobre não dá figos fora da estação? Está na Bíblia, meu nego: um homem feito, rei dos reis, se comportando como uma criança birrenta, dessas que se atiram no chão, aos berros. Se esquivar da verdade não devia fazer parte da crença de ninguém.
Agora, concordo, rir de Jesus ou de Maomé é perigoso. Os crentes não têm bom humor mas têm boa pontaria.

Questão de linguagem
Francis Ford Coppola escreveu o roteiro do Chefão e ou para Mario Puzo revisar. Na cena em que um dos bandidos prepara um molho, Coppola o fazia dizer: "Então se doura a linguiça". Puzo riscou o doura e anotou: "Um gangster não doura uma linguiça. Um gangster frita uma linguiça".

Crime organizado
Me disseram que exagero ao considerar crime organizado os escândalos políticos. É possível. Mas veja: o cara se elege com a ajuda de muita gente, burlando a lei, ou usando lacunas dessa lei, lei bolada por outros caras da mesma laia. Aí, eleito, ele usa a estrutura do Estado para roubar. Mais: usa os privilégios do cargo que ocupa para não ser processado como um criminoso comum, digamos, um batedor de carteira ou ladrão de galinhas. Esse privilégio vai a tal ponto que o cara faz chantagem em cadeia nacional sem que ninguém se emocione com isso, nem os malemolentes ministros do STF. Mais ainda: esse cara tem sempre vários colegas de vários partidos na sua defesa e montes de advogados, sempre os bambambãs do direito criminal. Se isso não denota uma tremenda organização, devo estar com o miolo mole.

Editorias
Um governante rouba da gente? Trata-se de escândalo político. Sai no jornal na seção de política. Um banqueiro ou alguém da bolsa rouba da gente? Pelo menos chamam de crime financeiro, mas o jornal noticia na seção de economia. Na seção de polícia só saem criminosos de classe média pra baixo. Nossa sociedade e nossos jornais são muito bem organizados.

Calejado
Andei comentando o noticiário com um rapaz de vinte anos. Ele não acredita em nada, nada mesmo, a não ser em algumas pequenas coisas e duas ou três pessoas. Fiquei me lembrando dos meus vinte anos. Fiquei triste por esse rapaz. Eu pelo menos levei mais tempo pra me desiludir, sem falar numa tarefa espinhosa: aprender a conviver com os calos.

Prisão de ventre
O que pode se esperar de uma espécie que tem problemas até pra, bem, até pra ir ao banheiro?

Autor
Ernani Ssó se define como ?o escritor que veio do frio?: nasceu em Bom Jesus, em 1953. Era agosto, nevava. ou a infância ouvindo histórias e, aos 11 anos, leu seu primeiro livro sozinho:Robinson Crusoé. Em 1973, por querer ser escritor, entrou para a Faculdade de Jornalismo, que deixou um ano depois.  Em sua estréia, escreveu para O Quadrão (1974) e QI 14,(1975), publicações de humor. Foi várias vezes premiado. Desenvolve projetos literários para adultos e crianças.

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