A gota d"água

Nenhum homem entende mais a alma e as angústias femininas do que o tudo de bom cantor/compositor Chico Buarque. Trocando em miúdos, não adianta …

Nenhum homem entende mais a alma e as angústias femininas do que o tudo de bom cantor/compositor Chico Buarque. Trocando em miúdos, não adianta ninguém tentar. Ele fica um tempo ausente dos estúdios, como se estivesse curtindo uma aposentadoria. Atreve-se a aparecer despudoradamente para delírio das revistas de fofocas com uma mulher casada em uma praia no Rio de Janeiro. Surpreende ao manter um relacionamento amistoso demais com a ex-mulher. Deixa escapar impressões políticas oportunas. E, um belo dia, o moço dos mais lindos olhos verdes que existe anuncia que tem música nova em gestação.


Depois de uma ausência inexplicável e dolorosa para seus fãs, o Chico Buarque fez as pazes com o público e apresentou o CD Carioca, que teve até direito a fila na pré-venda. Quem te viu e quem te vê. Pois, o grande construtor da Música Popular Brasileira (MPB), que ainda mantém o mesmo jeito manso e tímido de falar e o encantamento da adolescência, mostra por que é imbatível. Às vésperas de completar 62 anos, ele comprovou que não esqueceu o que melhor sabe fazer. Cantar, narrar, chorar, retratar, nos versos mais sentidos e cruéis, os melhores e piores capítulos protagonizados pelas mulheres nos seus atos de amor e sexo.


Quem imaginava que o moço de mil nomes na época da censura já tinha aposentado a criatividade, não chore ainda não. Na flor da idade, ele continua fazendo samba e amor até mais tarde e tem muito sono de manhã. Como quem vai ficar no corpo da gente, feito tatuagem, Chico mais maduro nos faz ear por um conjunto harmônico indescritível de música, letra e criatividade. Na primeira audição do CD Carioca, ele chega de mansinho e fica difícil elaborar um conceito final. Nas sucessivas vezes em que se ouve o CD (no tempo do vinil, a gente diria que gastava a agulha), os fãs vão redescobrindo o velho Chico.


Meus caros amigos e amigas. Se vocês já gostavam de letras pecaminosas e excitantes como "Terezinha", "Meu Amor", "Eu te amo", "Sem Fantasia", ou das insuperáveis "Atrás da Porta", "Olhos nos Olhos", "Sem Açúcar", ouçam um bom conselho que eu lhes dou de graça, preparem-se para o CD Carioca. De modo sorrateiro e às vezes insinuante, Chico vai cantando o amor deste século, entoando as agruras dos relacionamentos, narrando a ternura do encantamento, descrevendo o prazer do ato sexual e as decepções dos desencontros. Agora, sem medo. Sem fantasia. Com açúcar e com afeto.


Com meus truques, já havia ensaiado de todas as maneiras possíveis uma forma de dizer para a minha filha Gabriela que gostaria muito de ganhar o CD Carioca de presente de "Dia das Mães" ou, quem sabe, de aniversário. Até induzi que poderia juntar o dinheiro da mesada de maio e junho (assim como o Chico Buarque, sou do signo de Gêmeos). A pequena desnaturada fez mil contas e disse que o CD do Chico tava muito caro. "Fora de cogitação, mamy. Vou comprar um da série Perfil", disse, referindo-se àquela coleção que sempre tem CD em oferta por menos de R$ 10,00.


Se é assim, a gente vai levando. Ao chegar na redação na segunda-feira, fui surpreendida pela minha amiga Marcela que enquanto redigia o texto de uma pauta, gentilmente me emprestou seu aparelho e fone de ouvido para eu escutar o novo CD do Chico Buarque. Amei de paixão. Claro que, envolvida na redação das matérias, não podia prestar muita atenção no disco. Desta vez juro que sem a intenção do truque utilizado sem sucesso com a Gabriela, disse para Marcela que simplesmente tinha adorado o CD e que estava pensando em "me presentear com o CD, tipo assim eu mesmo enquanto pessoa, como cidadã".


Na terça-feira, ganhei o CD Carioca da Marcela. Ninguém merece. Ops. Foi a gota d"água. Deixe em paz meu coração que ele se derrete à toa. Um gesto radical demais. Suficiente para me mostrar que eu não estou nada no meu inferno astral, que o dia de amanhã será sempre melhor, que a felicidade é feita de pequenas gentilezas, que pensamentos positivos geram momentos positivos (não li nada de literatura de auto-ajuda, prometo). Até o Juquinha voltou a ser meu amigo.


E para deixar os fãs que ainda não escutaram o CD Carioca com aquela vontade, encerro com uma letra que é muito irada: "Quando ela chora, não sei se é dos olhos prá fora, não sei se ela agora está fora de si, quando me encara e desata os cabelos, não sei se ela está mesmo assim, quando se joga na minha cama, ela faz cinema?"

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve agens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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