A gorda, o velho e as coincidências
Non son los muertos los que em dulce paz repousam em la tumba fria, son los muertos, los vivem, pero tienem el alma muerta, …
Non son los muertos los que em dulce paz repousam em la tumba fria, son los muertos, los vivem, pero tienem el alma muerta, todavia.
Pablo Neruda.
Aconteceu, sem atmosfera idílica, sem sinais precursores: o senhor de barba branca bem aparada, próximo dos setenta anos, vestindo um nostálgico terno de linho branco, levantou os olhos da mesa em que jantava e deparou com uma mulher muito obesa, em idêntica circunstância, e neste momento seus olhares se cruzaram.
- Só um velho destes para me olhar- pensou a mulher, resignada.
- Só uma balofa destas para me olhar- pensou o velho, irritado.
O homem olhou para o dorso da sua mão e, depois, para as suas unhas; sempre fazia este gesto nervoso quando algo perturbava. Neste momento entrou "Lucy in the sky with diamonds" pelas caixas de som do restaurante com pista de dança.
- Ué, o velho gosta de Beatles? Claro, é do tempo dele - ela também estava perturbada.
- Pelo menos esta gorda gosta de Beatles - pensou o velho, ao ver que ela balançava a cabeça no ritmo da música.
Novamente seus olhos se encontraram, mas o que velho viu, nunca mais esqueceria para o resto dos seus dias. Havia experimentado semelhante vivência a esta quando tinha dezessete anos e deu e recebeu o seu primeiro beijo de sua primeira namorada chamada Lucy, vindo a casar-se com ela e, depois, enviuvado. Coincidiu que quando abriu os olhos, ao término daquele beijo duradouro, enxergou uma chuva de estrelas, simples desintegração de um meteorito ao entrar na atmosfera, para ele a confirmação dos céus, do destino inexorável.
Ao cruzar com o olhar da moça muito obesa, ele viu um fio fosforecente serpentear, pairar por uns segundos, depois avançar em sua direção, como um corisco de luz, e enrodilhar-se em seu corpo com espantosa velocidade, tendo a outra extremidade se enrodilhado no corpo daquela? linda moça de formas generosas, agora assim lhe parecia, e assim era, se assim lhe parecia, como não?
- Mas ele é muito interessante, e nem é tão velho assim, talvez tenha uns cinqüenta - pensou Lucy, a mulher obesa. Agora estremecida por fenômeno ilusionante, via um homem maduro, muito charmoso, ungindo por um carisma magnético, assim lhe parecia, e assim era, se assim lhe parecia. Como não? E semelhante parecença nunca havia visto em seus trinta e oito anos de vida.
Se fosse um filme, seria possível ver a tela cheia com os olhos de Lucy, a moça, não "banhados em emoção", palavras rasas, distantes do que se quer dizer, na equivalência com a origem do universo, à centelha cósmica, o clarão, o indescritível, e a próxima cena, a tela cheia com o rosto iluminado do velho, o seu largo sorriso, entre a bondade e o picaresco, com uma pimenta rubra entre os dentes, com olhar de bandido.
Fosse um filme, "Lucy in the sky with diamonds" seria uma trilha sinfônica, com mil violinos e centenas de celos na oferta do contra-ponto progressivo e andante, orquestra e coral de mil vozes, com direito a maestro de imensa cabeleira prateada, regente inspirado destas substâncias inefáveis, quiçá emocionantes. Um imenso holofote jorrou seu facho de luz branca no centro da pista para onde Lucy e o homem se encaminharam e ali dançaram (ou talvez levitassem?), giravam e giravam com leveza sinuosa, possuídos pela graça invejável dos encantados. Por que se olhavam nos olhos, como se depender de olhar fosse igual a respirar? E giravam, ou tudo girava em torno, e eles sós, no centro do mundo, no eixo de carrossel fantástico, no âmago de coisa misteriosa, mesmo depois que a música cessou tarde da madrugada.
As horas voaram, assim lhes pareceu, já amanhecia. Dezenove garçons vestidos de preto não ousavam se mexer no interior do estabelecimento, agora sem público, apenas olhavam com incredulidade e respeito sacralizado pela causa do improvável, própria dos eventos estranhos. Mas ao repentino levantar da mão frágil daquele idoso, absurdamente feliz, sentado à mesa com aquela mulher imensamente gorda, absurdamente alegre, céleres levavam mais um balde com champanhe, e outro, e outro, "?e este agora por conta da casa". Contagiados pelas emulsões, por assim dizer, miraculosas, foram protagonistas e testemunhas solidárias destas abstrações incompreensíveis.
Não será aceito o entendimento popular, simplório e banalizante, segundo o qual "sempre existe um chinelo velho para um pé torto ", porque tortos e velhos são os preconceitos, como ferros de marcar, porque gado a gente toca, tange ferra engorda e mata, mas com gente é diferente. Não sabemos exatamente o que é, ninguém arrisca explicitar por meio das suas racionalidades. Imagina tratar-se do assalto do amor entre um idoso e uma mulher obesa? Nada que venha da natureza humana deveria surpreender, portanto, se é paixão, se amor lhe pareceu, assim é, se lhe parece.