A fome e a fobia de gol

Os melhores jogadores, os mais talentosos e inteligentes jogam no nosso time pela simples razão, segundo a qual o nosso time é o melhor, …

Os melhores jogadores, os mais talentosos e inteligentes jogam no nosso time pela simples razão, segundo a qual o nosso time é o melhor, e o deles é um bando de sujeitos mal intencionados que querem apenas nos atrapalhar.


Mas se os nossos jogadores são tão bons assim, porque insistem em jogar boa parte do tempo dentro de uma área de até 30 centímetros de distância da linha lateral? Eles têm o campo inteiro para fazer es e jogadas geniais. Mas preferem ficar reclusos ali, naquele espaço exíguo, alheios a tudo. Querem dar espetáculo naquela faixinha, num palco limitadíssimo. Imagino que em outras encarnações estes jogadores foram bailarinas que dançavam em cima do queijinho.


E o que dizer da fobia do gol? Os nossos volantes e atacantes fazem o mais difícil: conduzem a bola com inteligência física, com arte até, são dribles diabólicos, levam encontrões pesados, dedo no olho, cotovelaço na nuca, e, a poucos metros do gol, o giro de corpo e logo tem início a apoteose daquela trajetória feita para nos redimir. Ele não toca mais no chão, é puro balê. Com a bola adesivada na lateral do pé, o menino contraria os fundamentos da física e se transporta para a galeria dos seres absurdos, como os demônios, os mágicos e os astronautas.


Súbito irrompe nos altos falantes do estádio a ópera Tosca, de Puccini, em uma emocionante interpretação da Recondita Armonia, na voz de Luciano Pavarotti e, simultaneamente, o talento daquele menino enviado de Deus desmoraliza dois zagueiros adversários. Ele não tem a objetividade de Romário, a frieza de Pelé, a potência de Kaká; sua inspiração é Robinho. Um dia ele quer ser um Robinho para, entre outras coisas, dar uma casa para a mãe dele. O goleiro avança em sua direção (nestes momentos cruciais goleiros se agigantam, se transformam em gladiadores sedentos de sangue). Não acredito no que os meus olhos estão vendo, o nosso menino não deu um lençol no goleiro, ele deu o dormitório completo, cama, edredom, cômoda, roupeiro, tudo.


Agora o nosso menino de ouro encontra-se na solidão que antecede a glória ou as grandes tragédias, ali na pequena área. Luciano Pavarotti canta um dos trechos mais comoventes da ópera.


Neste exato momento (tudo em câmera lenta), os olhos do nosso menino pulam para fora das órbitas, o seu pulso vai a 160 batimentos por minuto, a boca fica seca e com gosto de azinavre, o estômago se contrai e, diante desta desordem orgânica, sua alma não a e o abandona.


Ela foge amedrontada e voa de volta para os grotões da miséria, para o barraco onde nasceu. Tire a trilha sonora, desligue a voz do cantor de ópera e os recursos cinematográficos. Agora sabemos que o nosso garoto de ouro está em pânico, sozinho e de cara para o gol. É como um cirurgião que a mal quando vê sangue, como o ator que esquece o texto no meio de um monólogo. Também estou com pena dele. Na minha fantasia este golaço tinha que acontecer. Meu Deus, como a vida é cruel! Para ganhar tempo olho para torcida mais uma vez.


Vejo homens sofridos que são derrotados durante toda a semana, eles também precisam deste gol; vejo mulheres que são arrimo de família, vejo seus companheiros desempregados e meninos que não tiveram infância; vejo idosos que só vivem para rezar e torcer, todos revestidos pelas substâncias indescritíveis da epifania coletiva, com o grito de gol prestes a explodir em milhares de bocas desdentadas.


Enquanto faço essas reflexões quis congelar a cena do nosso jogador que subiu rápido demais no showbiz do futebol. A fome de gols se mistura com as fomes adas que surgem para assombrar os seus sonhos de menino de dezessete anos. 


Me arrependi de ter criado esta situação.Vou parar por aqui. Estou me sentindo mal. Façamos o seguinte: termine esta crônica como quiser. Eu lavo as minhas mãos, o final é seu. Faça um milagre, ou se quiser fruste aquela multidão, o nosso menino e a família dele. Eu o. Onde é que está escrito que eu tenho que fazer tudo sozinho?            

Autor

Paulo Tiaraju é publicitário, diretor de Criação da agência Match Point, cronista e violeiro. Foi o primeiro criativo gaúcho a ganhar o prêmio Publicitário do Ano, concedido pela Associação Riograndense de Propaganda (ARP). É pai de Gabriel Nunes Aquino.

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