A fantasia da minha memória

Nem todos os dias e noites são iguais neste verão escaldante de Porto Alegre com tudo deserto em volta. Até porque as pessoas não …

Nem todos os dias e noites são iguais neste verão escaldante de Porto Alegre com tudo deserto em volta. Até porque as pessoas não são sempre as mesmas, aram por fases evolutivas ou involutivas; trocaram de endereços, metas de vida ou de acompanhantes. E mesmo que as estórias de cada um apresentem uma tendência à repetição, o inesperado sempre poderá fazer uma surpresa. Introduzindo na cena um novo protagonista, quem sabe um novo heroi no BBB9, a casa mais observada do Brasil (cumã, que ausência de criatividade) ou uma pergunta fatal como quem matou Odete Roitman.


Até aí, nenhuma novidade e zero em teor de profundidade. Todos já estão comentando que o ano está ando depressa, falando do início do campeonato gaúcho, dos primeiros dias de Obama, dos novos vereadores e que novela! Mas, sabem aquela sensação pessimista que, às vezes, nos invade e se transforma em epidemia de tanto que coça? Pois é. Entrou sem convite, na metade de janeiro (não marquei o dia certo na agenda), sorrateira na minha vida, mergulhou na minha alma, bagunçou meu roupeiro, remexeu no meu ado, acordou minha família.


Desde então, nada ficou no lugar na minha suposta organização. E eu sou completamente neurótica sem minha metodologia (pelamordedeus, pequeno defeito). Virei de lado na cama para ver se o pensamento ruim não dominava os meus sonhos e nada. Lá, ele sorridente nos meus pesadelos. Troquei o trajeto das caminhadas saudáveis para enganar a nuvem de sombra que me acompanha nos dias alternados. Adiantou? O sol ilumina o percurso de todos, menos o meu, que segue escuro. Quem sabe variar um pouco a leitura? Esta tentativa ainda está em fase experimental porque recém me apropriei de várias opções literárias e a estatística não está disponível.


Apesar dos pesares, tenho segurado esta barra. Pode ser só uma impressão fatalista para interromper minha total afinidade e sucesso com os anos ímpares. Ou a perseguição subconsciente da pequena (mínima) ruga ao redor dos olhos que os cremes de rejuvenescimento não conseguiram reduzir. Talvez o medo de me enternecer demais com a chegada da sobrinha-neta no início de maio e permitir que eu reconheça, na filha da Camila, que tantas vezes acarinhei e fiz cafuné, os remotos de inúmeras crianças que fui perdendo no inevitável amadurecimento que embrutece os adultos.


Como mãe chata de doer (o que pensava ser dedicação total maternal à filha única ganhou outra conotação), possa já sofrer antecipada a saudade da guria que minha Gabriela nem lembra que um dia foi. Ou uma melancolia pelas vezes em que não declarei em alto e bom som às pessoas que eu as amava demais da conta. Ou arrependimento pelos beijos que não dei. Tomara que seja apenas uma fantasia de Colombina abandonada pelo seu Arlequim, enciumado pelo amor do Pierrô, que escapuliu do baú das recordações. E, no final, deixe a avenida como mais uma desilusão de carnaval. E oxalá, abandone este corpo que não lhe pertence!

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve agens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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