A ética agoniza em praça pública

Era uma garota que como eu amava os Beatles e os Rolling Stones. Girava o mundo, mas acabou jornalista em Porto Alegre. Na terça-feira …

Era uma garota que como eu amava os Beatles e os Rolling Stones. Girava o mundo, mas acabou jornalista em Porto Alegre. Na terça-feira à tarde, de posse das pautas diárias e nem tão garota assim, estava disposta a escrever a coluna sobre o show irado dos Stones, folia pré-carnavalesca e coisas inexplicáveis do meu país tropical, como discutir quem vai deixar o BBB6. A idéia inicial foi derrubada ao perceber os olhos cansados e rostos franzidos de uma comissão de notáveis no Sindicato dos Jornalistas do Estado, notadamente preocupada com a missão de sugerir alterações no Código de Ética da categoria.


A Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) realizará, no final de março, um encontro quando pretende reunir as sugestões dos coleguinhas de todos os cantos da nossa pátria mãe gentil. De posse desse coletivo de contribuições, os nossos representantes na Fenaj deverão apreciar e votar as idéias que servirão para sinalizar como deve ser nossa conduta profissional. Pois, caro leitor, pasme,  uma profissão de importância tão direta na vida de toda a sociedade ainda convive com um Código de Ética tão atrasado.


Confesso que não senti inveja de nenhum dos integrantes da comissão do Sindicato. Enquanto aguardava uma brecha para entrevistar alguém sobre o assunto, ito que tive dois sentimentos. O primeiro de que a reunião terminasse logo para dar um abraço de urso no João Souza, grande jornalista, um aperto amigo no meu editor aqui no site, o Vieira, uma vez que sempre nos cruzamos na corrida, e mandar um beijo para meu deputado preferido através de seu assessor, Pedro Osório. A reunião seria longa. O outro, ousado demais, seria de mandar, por mail, sugestões para ajudar na discussão.


Lembrei que ética é uma linha muito tênue que se equilibra na corda bamba da vida profissional e pessoal. E que uma vez, mandei um pouco a ética profissional, sob o ponto de vista de ideologia política, às favas (atire a primeira pedra quem nunca fez isso) para segurar um emprego e carrego esse arrependimento até hoje. Desde então, optei por encarnar sempre uma "defensora dos frascos e comprimidos" e, se for o caso, seguir perdendo empregos, mas conseguir dormir em paz quando deito à noite, sem precisar contar carneirinhos.


Os ensinamentos de Cláudio Abramo não me abandonaram durante o caminho para a outra pauta. Na visão de Abramo, descrita com propriedade no livro "A Regra do Jogo", não existem duas éticas, a de cidadão e a do profissional. Logo, não existe uma específica do jornalismo, ela é a mesma do cidadão comum, a empregada doméstica, o dono da banca da esquina, o empresário, o cantor, o menor abandonado. E Abramo ainda arriscava mais ao afirmar que um jornalista não deve esperar que "possa bater carteira e não ser preso pelo fato de ser jornalista".


Com ou sem código de ética, como já ensinava Abramo, o papel do jornalista é defender o seu povo, contar as coisas como elas ocorrem com o mínimo de preconceito pessoal ou ideológico, sem ter o preconceito de não ter preconceitos. "Deve ser aquele que conta a terceiros, de maneira inteligível, o que acabou de ver e ouvir", profetizou.


Um cenário ideal. Todos concordam. Não fosse um certo desleixo e preguiça que se percebe na apuração precisa dos fatos, na formulação do texto. Onde está a ética? Não fosse um esmiuçamento exagerado da vida privada sob o pretexto de interesse público. Onde está a ética? Não fosse uma ausência da pluralidade de fontes e quantidade de pautas. Ainda estou procurando a ética. Como ainda me recordo a capa da edição da Veja de 26 de abril de 1989 com a manchete "Cazuza, uma vítima da AIDS agoniza em praça pública".


Meninos da comissão do Sindicato, recebam o meu apoio. Reconheço que a tarefa é inglória. E que assim como essa coluna, será devidamente torpedeada. Mas, vamos em frente. Talvez, ainda estejamos na fase pré-histórica de constituir a ética por adesão e convencimento e não por decreto, o que é muito ruim para a categoria.

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve agens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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