A Estranha ? A Carta
Nestor só saiu de si mesmo e voltou-se para o mundo ao redor quando o avião já estava ganhando altura. Eram poucos assentos na …
Nestor só saiu de si mesmo e voltou-se para o mundo ao redor quando o avião já estava ganhando altura.
Eram poucos assentos na primeira classe e, aparentemente, ocupados por não brasileiros.
Apalpou, por fora, o bolso de sua japona, lembrou-se que deveria chegar num Rio quente como costuma ser a despedida da Primavera e sentiu a leve presença do envelope no bolso interno. Sua mão dirigiu-se para o bolso, mas um súbito pensamento abortou o gesto.
Nestor, desde a véspera, queria acomodar aquela separação compulsória na vida que tinha pela frente. Paula e ele mesmo concordaram que não poderia haver paliativos, promessas e encontros fortuitos em países que não o Brasil.
Eles tinham que se decidir pelo ato cirúrgico, um adeus na acepção exata, definitivo. Seria difícil, se não impossível, viver com infinitas promissórias resgatáveis de tempos em tempos. O caso deles era um caso terminal. Que fosse enterrado no menor tempo? Essa volta à racionalidade é que deteve o gesto de Nestor à cata do envelope.
Longe de Nestor fazer-se de vítima. Ainda que fosse difícil enfrentar o futuro, ele confessou para si mesmo que aquela breve aventura em Nova York havia sido tão profunda que valia, até, como justificativa de vida. Essa idéia mexeu com a cabeça de Nestor e ele achou que estava exagerando. Outros tempos ados, mas felizes, pam-lhe um sorriso na boca. Um outro pensamento acendeu uma luzinha na sua cabeça e fez a distinção entre saber uma coisa por relato alheio e essa coisa ser sentida pela própria pessoa. Aprendera isso pelos tristes acontecimentos sofridos por familiares e pessoas muito amigas, pois era possível saber do tamanho do sofrimento dessas pessoas, mas nunca sofrer o sofrimento delas. Quase soltou uma risada quando lembrou-se de Shakespeare:
"Ri-se da cicatriz quem nunca foi ferido".
Uma das aeromoças era brasileira e parecia saber que ele também era, pois perguntou, em português brasileiro, se queria alguma coisa.
- Um uísque, por favor, com duas pedras de gelo. À parte, uma mineral sem gás.
Saboreando o uísque, após um bom gole de água, começou a "preencher a ficha" da aeromoça:
Morena, em torno de 1,68m de altura, 58 quilos, menos de 30 anos, cabelos castanhos muito bem tratados e uma pele, ainda que queimada de sol, lisa como bunda de bebê. Seios empinados e proporcionais aos quadris. Um porte ereto, quase de uma majestade face aos súditos. A incógnita - para Nestor, que pela fala e biotipo gostava de adivinhar a cidadania das pessoas - era saber onde surgira aquele belo tipo de mulher.
Nestor, de forma cuidadosa, tirou o relógio do pulso, atrasou-o, e chamou a aeromoça pelo sobre a sua cabeça.
Ela veio até o assento, Nestor pediu as horas para acertar o relógio, fez algumas perguntas e ficou atento nas respostas. Quando ela pronunciou, pela terceira vez uma palavra terminada em "e", como "e" mesmo", ele não teve dúvidas:
- Você deve ser do Paraná, mas de que cidade?
- Pinhão, mas como o senhor..?
Outro uísque, Nestor folheou revistas a esmo, não se concentrava em nada, rejeitou o jantar e quando seus pensamentos voltaram-se para Paula, o sono chegou.
Aqueles últimos dias pouco dormidos aproveitaram a solidão de Nestor e levaram-no a horas e horas de sono profundo. Acordou já sobre terras brasileiras e com muito apetite. Foi à toalete, lavou o rosto, penteou-se, trocou alguns "bom dia" e, já no seu lugar, alimentou-se com prazer.
Resolveu tirar logo a japona, roçou no envelope e resolveu, afinal, encarar a realidade:
N:
Há 20 meses fui deixar aí, no Kennedy, Pablo, meu homem.
Menos de uma hora depois de desembarcar em Bogotá, ele estava morto, assassinado.
Internei-me numa clínica e, 45 dias depois, saiu de lá, em Boston, uma outra pessoa.
Minha simpatia por você e por sua evidente timidez aconteceu assim que sentei em sua mesa, naquele bar de Ipanema. No nosso segundo encontro, coincidência pura, alguma coisa mexeu comigo. Jamais imaginei um terceiro encontro. Ele aconteceu e as conseqüências nós dois sabemos.
Aquela pessoa que saiu da clínica de Boston foi assassinada por você e, quanto a isso, agradeço.
Jamais imaginei que me deitaria com outro homem e, muito menos, que alguém pudesse ressuscitar tudo aquilo que morreu em Bogotá.
Não conseguiria, agora, estar aí com você e correr o risco de todas as inconveniências.
Sou uma mulher condenada ao hoje, temerosa dos próximos amanhãs.
Sabemos, ambos, do imperativo do hoje. Assim seja:
Adeus.
P/R
Nestor releu a carta, quase que mastigando palavra por palavra, mas se deteve, por algum tempo, no "temerosa dos próximos "amanhãs"."
Quando foi anunciado que iriam começar os procedimentos para o pouso no Aeroporto Internacional Tom Jobim, a memória de Nestor assoprou:
Dentro de um minuto estaremos no Galeão
Este samba é só porque
Rio, eu gosto de você
A morena vai sambar
Seu corpo todo balançar
Aperte o cinto, vamos chegar
Água brilhando, olha a pista chegando
E vamos nós
Aterrar?
Já desembaraçado, com a bagagem no carrinho, Nestor viu o "Seu" Batista, motorista do jornal, esperando por ele.
Chegando a Ipanema, deu instruções ao motorista e desceu no calçadão da praia. Atravessou a rua, olhando o mar calmo e um céu azul, a natureza em paz. Bem no alto, divisou um avião a caminho do "não sei onde".
Foi o toque final na disposição de Nestor. Começou a caminhar firme no calçadão, sem ainda saber para onde, mas certo que traçaria o seu próprio caminho. Estava iniciando o seu amanhã.