A crônica que não saiu
Millôr Fernandes, quando Vão Gogo mantinha na revista semanal "O Cruzeiro" (1925/1975) a seção Pif-Paf, na qual seu humor, assim como o "Amigo da …
Millôr Fernandes, quando Vão Gogo mantinha na revista semanal "O Cruzeiro" (1925/1975) a seção Pif-Paf, na qual seu humor, assim como o "Amigo da Onça", do Péricles, e a charge do Carlos Estevão, era um carro-chefe da publicação. Quando Millôr pedia aumento de salário e não era atendido, em vez de escrever, só desenhava, às vezes simples borrões multicoloridos. Como ele sempre ilustrava a seção, isso não quebrava o seu vínculo trabalhista e, graças ao seu talento, apenas três ou quatro semanas de borrões antecediam a volta à escrita. Hoje, um problema muito diferente quase me leva a mandar um borrão para o caro editor Vieira da Cunha.
Entrego logo o motivo pelo qual não há crônica: sentei-me para escrever sobre o publicitário João Carlos Magaldi, colega na Standard Propaganda, Rio, e chefe na Rede Globo, amigo de sempre, onde implantei, a pedido dele, a Agência da Casa. O problema surgiu logo nos primeiros dígitos. Como escrever sobre ele sem fazer referência à Magaldi, Maia, agência de propaganda paulista com ascensão vertiginosa, de vida curta, na década de 1960, mas de ado legendário? Da Magaldi, Maia saíram o "produto Roberto Carlos", as marcas Jovem Guarda, Calhambeque e os shows dominicais na TV Record, com a Ternurinha Wanderléa e o Tremendão Erasmo Carlos. Do Maia, Carlito Maia, saiu o bordão "É uma brasa, mora?".
O mineiro Carlos Maia de Souza (1924/2002), alma gêmea do Carlito do Charles Chaplin, tem sua memória reverenciada, em São Paulo - onde cresceu e viveu - através do Troféu Carlito Maia de Cidadania. O Magaldi, já na Globo, entre campanhas memoráveis como a "Mexa-se", criou o "Prêmio Profissionais do Ano", cabendo-me a redação do primeiro regulamento e a aprovação de um veemente pleito meu: os prêmios tinham que ser, como foram, em dinheiro.
Magaldi e Carlito Maia fazem parte do melhor quinhão que a vida me proporcionou: viver rodeado de pessoas "carimbadas" com o rótulo de "excelências", pelo caráter, pela criatividade, pela doação, pela cidadania e, por último, mas o mais importante, pelo amor.
Acho que qualquer leitora ou leitor já tropeçou, engasgou e foi travada(o) por um clima de sensibilidade em relação a pessoas ou fatos que fazem parte de suas vivências. Pois é, essa crônica não tem condições para acontecer, hoje, pois fiquei travado. Nem procurei outro assunto, comprometi-me, agora, com lembranças e não vou me descartar. Contarei apenas uma pequena história antes de dar por findos os trabalhos neste domingo, 20 de março.
Eu era, na Standard Propaganda, Rio, nos anos 60 do século ado, um profissional de atendimento, mas funcionava, também, como coringa. Houve necessidade de colocar ordem na Criação e fui destacado, pela direção, a ar uma temporada na sua chefia. Na época, o gerente era exatamente o Magaldi e quando criei uma campanha absolutamente correta, ele se disse satisfeito, com uma observação:
- A campanha está perfeita, Mario, cobre todos os pontos do briefing, mas, e o "pulo do gato"?
Esse "pulo do gato" é aquele momento onde se pode dizer que o criador, de fato, cria.
Isso ficou impregnado na minha trajetória profissional. Tempos depois, fui dirigir uma agência e surgiu um pequeno cliente, uma loja de som de dois engenheiros que estavam vendendo serviço, a venda e instalação de equipamentos. Eu levara comigo, como redator, o Capinam, o poeta e letrista parceiro de Francis Hime, Geraldo Azevedo, Ivan Lins, Paulinho da Viola, Gilberto Gil (Soy Louco por ti, America) e de Edu Lobo, em Ponteio, vencedor de um festival de música da TV Record. Cheguei pra ele, já com o "pulo do gato" pronto e pedi: - Uma velhinha surda entra na loja para agradecer a instalação de som feita para o neto, como um presente de surpresa. Capricha, Capinam, faz um texto que emocione. Ele criou um texto maravilhoso que só no final, esclarecia: "Dona Clarinha é surda".
Quando Magaldi foi para a Rede Globo, como Superintendente de Comunicação, pediu-me para escrever, como "frila", discursos para o Walter Clark, pois o Otto Lara Resende já escrevia os do Roberto Marinho, em assuntos de TV, e andava atarefado. Depois do segundo ou terceiro discurso que escrevi, acabamos acertando um fixo mensal para essa atividade de ghost-writer. Pouco depois, Magaldi convencia o Walter a criar uma agência própria para a Globo e lá fui eu, implantar a Agência da Casa, justamente quando ia começar a mudança da marca da Rede, que era do Borjalo, para a marca criada por Hans Donner.
Pouco tempo após a implantação da logomarca, que trazia a inscrição "Rede Globo", levei um anúncio para a aprovação do Magaldi que viu e perguntou:
- Esqueceram de colocar "Rede Globo"?
- Não, é o "pulo do gato". Está mais que dispensável.
No mesmo dia, pipocaram os memorandos do Boni mandando tirar, também do vídeo, o "mais que dispensável".
Em setembro de 2005, dei por encerrado o texto de um livro de luxo, feito a pedido da Confederação Nacional do Comércio, brinde comemorativo de seu sexagésimo aniversário de fundação. Li, reli e dei-me por satisfeito quanto ao texto, que começa com Getúlio Vargas assumindo o poder em 1930 e criando o Ministério do Trabalho. Pedi à gerente da minha equipe que tentasse descolar, junto ao Ministério, a primeira carteira de trabalho, o que não foi possível. O que foi possível e ampliou o tamanho do "pulo do gato" foi a carteira de trabalho do próprio Getúlio Vargas, já presidente da República e cujo endereço era o Palácio do Catete.
Devo, não nego, e quando puder pagarei a crônica que hoje não saiu.
Inté.
