A crônica da crônica
Se, além dos laços familiares, há algo que a vida me ofereceu em grandeza incomum, foi a amizade. Duas pessoas com quem convivi expressaram …
Se, além dos laços familiares, há algo que a vida me ofereceu em grandeza incomum, foi a amizade.
Duas pessoas com quem convivi expressaram de forma radical o sentimento pelos amigos.
Sergio Porto - o Stanislaw Ponte Preta - confessou morrer um pouco quando morria um amigo, e Vinicius de Moraes escreveu: "?enlouqueceria se morressem todos os meus amigos!".
Quando do golpe de 1964, o jornalista gaúcho Carlos Bastos, amigo da "Última Hora", com risco da própria vida, conseguiu colocar-me a salvo da polícia que me caçava. Que mais dizer?
O poema aberto, "Imitação de Borges", do conhecido novelista Manoel Carlos, também cronista e poeta - meu amigo -, em sua versão de 1982, começa referindo-se a amizades de 34 anos antes: "? Pela turma da Biblioteca (adoradores da estátua de Minerva), no inverno de 1948?"
? Por Cyro del Nero, na tarde de sua partida para a Grécia, há muito tempo, em Santos,
Pelo Sabag, Antunes, Pavesi e Barone - comigo famintos na esquina do Jeca*.
E por tudo que tenham conseguido diante dos espelhos?"
Pois bem, Maneco, Cyro del Nero, eu e os aí citados, inauguramos nossas duradouras amizades aos pés daquela citada estátua.
Cyro, hoje cenógrafo internacional e professor da USP, iniciou sua carreira profissional indo com um diretor de teatro grego para Atenas, com recursos obtidos entre amigos, entre os quais os da Biblioteca Municipal de São Paulo.
A respeito de minha última crônica aqui, Cyro mandou-me um e-mail que me fez refletir sobre valores intangíveis e, entre eles, talvez o maior, a amizade.
Eis o e-mail do Cyro e minha resposta:
"Bravo Mariolino.
Que lindo texto sobre o environment onírico.
E até parece que de Sigismundo Freud você entende mesmo, pois os signos do sonho estão quase completamente corretos em sua interpretação. A única coisa que escapou como significado é a coisa mais positiva do sonho e você não nos revelou. A escada SOBE. Escada descendo é coisa ruim para Freud.
Espero que as escadas de seus sonhos sempre subam e nunca sejam as escadas abaixo.
Interessante ler de você um texto sobre os recursos psicanalíticos, você que há décadas me indicou o Horus Vital Brasil, meu pai, meu professor de existência. Durante quatro anos no Rio de Janeiro freqüentei a poltrona do Horus. E há um ano atrás conheci uma filha do Horus que me presenteou com uma cópia de uma entrevista com ele, na Globo. Chorei cântaros de emoção.
Figuras maravilhosas como o Horus continuam a nos transmitir a técnica de ver a verdadeira realidade nossa, nossos sonhos.
Parabéns pelo seu discurso.
Um beijo do Cyro."
Cyro amigo, aqui vai a história de "A Eternidade", a crônica:
A rua do sonho - General João Manoel - e a escadaria são de Porto Alegre. Existem. Eram lindas e bem tratadas. Há uns três anos fui revê-las e estavam um lixo. Sua última quadra atravessa a Duque de Caxias, antiga Rua Formosa, e a escadaria desemboca na Fernando Machado, antiga Arvoredo. Ícone da cidade e - para mim - ícone de uma paixão.
Na noite de 24 de maio de 1957, no auditório do Instituto de Belas Artes, junto com outros dois textos respectivamente encenados por Antonio Abujamra e Luiz Carlos Maciel, foi a estréia da peça "O Provocador", de Paulo Hecker Filho, minha primeira direção em Porto Alegre.
O sucesso pediu comemoração e, na festa, foram dançados os primeiros os de um grande amor. O amor morava na Duque de Caxias, a poucos metros daquela rua encantada onde nos desvendamos um para o outro e o primeiro beijo nos encaminhou para o deslumbramento total.
Meses depois problemas no relacionamento e meus compromissos no Rio interromperam aquele ciclo de paixão.
Veja como o sonho estava certo, Cyro querido, a vida é que estava errada: "A rua não acabava, ou melhor, acabava para os veículos, pois ao final da quadra transformava-se numa escadaria com uns 60 degraus e, aí sim, abaixo, a rua desistia na calçada de uma rua transversal. Não conhecia bem o bairro, mas sentiu que essa configuração remetia a um afluente chegando ao seu destino. Ou a uma metáfora da vida, antes e depois da queda?"
Cyro, amigo-irmão, a crônica de hoje reflete minha preocupação com os jovens que estão sendo obrigados a crescer e conviver nessa libertinagem de valores em que se tornou a nossa sociedade. Que, pelo menos, a amizade sobreviva.
Um beijo, irmão.
Inté.
PS. Minha crônica anterior dizia da exigência do meu sonho para que eu jogasse no bicho, especificamente no gato. Ele compareceu no quarto prêmio, ou seja, "a escada sobe".
