A cidade onde cresci

Nasci em Campinas em 1931 e, em 1936, minha família mudou-se para São Paulo, uma província que ainda engatinhava antes de se tornar metrópole. …

Nasci em Campinas em 1931 e, em 1936, minha família mudou-se para São Paulo, uma província que ainda engatinhava antes de se tornar metrópole. Apesar de o Rio ser a capital federal, cultural e artística do país, São Paulo não temia o moderno.


A Semana de 22 e o movimento modernista já não espantavam. Afinal, uma de suas principais lideranças - Mario de Andrade - em 1935 já era o Diretor do Departamento de Cultura, fundado por ele, Paulo Duarte e Sérgio Milliet, que, por sua vez, dirigia a Biblioteca Municipal.


Essa biblioteca, hoje Mario de Andrade, tendo à frente um intelectual de primeira linha, saciava nossa fome pelo conhecimento, inclusive o moderno. 


Enquanto os Estados Unidos nos colocavam a par dos textos que ganhavam a Broadway e nos apresentavam safras de novos escritores, a França nos enviava o que acontecia no pensamento e na literatura do mundo ocidental. Naquela época mágica de sua existência, a biblioteca vivia um permanente sentimento de urgência.


Foi lá que ganhei outro monte de amigos eternos: Cyro del Nero, Manoel Carlos, Antunes Filho, Fábio Sabag, Bento Prado Jr., Mauro Rubens de Barros, Ruth e Carlos Henrique Escobar. Pedro Morato desistiu de ser o grande poeta de uma grande obra e jogou-se de um viaduto.


Conheci Flávio Rangel no Colégio, levei-o a assistir pela primeira vez a um espetáculo de teatro - A Falecida - e a muitos outros.


Levei Flávio à biblioteca e ele agregou-se à turma, onde havia um grupo que logo se profissionalizava e começava a ganhar fama no teatro e na televisão. Foi o caso, também dele, Flávio, amigo-irmão que morreu de cigarro e a quem visitei dias antes da despedida definitiva. 


O Teatro Brasileiro de Comédia, iniciativa de Franco Zampari, engenheiro italiano dos quadros das Indústrias Matarazzo, desde 1948 prosseguia em São Paulo a renovação estética trazida por Ziembinski da Europa e que, em 1943, revelo na montagem de O Vestido de Noiva a força de Nelson Rodrigues e o talento do pintor Santa Rosa como cenógrafo. Os principais elementos de um espetáculo aram a ser englobados na mesma proposta: texto, direção, cenografia, figurinos, luz e, quando necessários, som e música. O TBC foi a "deixa" para Alfredo Mesquita, intelectual voltado para o teatro, fundar em 1948 a Escola de Arte Dramática de São Paulo. De lá saiu um exército de talentos.


Naquele clima cultural, acabaram se concretizando as ações iniciais de estudantes de Filosofia que, em 1940, criaram o Clube de Cinema de São Paulo. Não por coincidência, três de seus fundadores tornaram-se legendas de suas futuras atividades: Paulo Emilio Salles Gomes - historiador e crítico de cinema, agitador da atividade no Brasil; Décio de Almeida Prado - crítico, historiador e professor de teatro, presidente e diretor artístico do Grupo Universitário de Teatro - GUT, criado e patrocinado pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Sociais da USP, em 1943, e uma das raízes do futuro TBC; e Antonio Candido de Mello e Souza - escritor, crítico e professor de Literatura Brasileira.


O Clube, fechado pela polícia de Vargas ditador, deixou sementes que vingaram em 1946, com a inauguração de um segundo Clube de Cinema, cujo acervo acabou constituindo-se na Filmoteca do Museu de Arte Moderna (MAM), que ou a ter exibições públicas. Desde 1984, a Cinemateca foi incorporada ao governo federal como um órgão do então Ministério de Educação e Cultura (MEC) e hoje está ligada à Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura (Minc).


Assim como o TBC, Teatro de Arena, Cacilda Becker, Maria Della Costa, Paulo Autran, Sérgio Cardoso, Ziembinski, Rugero Jacobbi, muitos outros e  companhias estrangeiras  foram meus professores de teatro, a Cinemateca paulista foi a minha escola de cinema.


A exemplo do TBC, empresários viriam a se interessar por cinema e, em 1949, Franco Zampari e Francisco Matarazzo Sobrinho à frente criaram a Cinematográfica Vera Cruz. Ano seguinte, Mário Audrá Júnior, o Marinho, filho de uma rica família da indústria têxtil, fundou a Cinematográfica Maristela. Naquele período, foram criadas, em São Paulo , cinco empresas produtoras de filmes.


O cinema e suas salas de exibição foram, sem dúvida, pontos de destaque na grande efervescência artística e cultural daquelas duas décadas. Terminada a Segunda Guerra Mundial, França, Inglaterra e Itália, principalmente, voltaram à produção de filmes e disputavam com os Estados Unidos, México e Argentina grandes bilheterias.


As salas de exibição, em grande quantidade, ofereciam luxo e conforto. O segundo "Centro" paulistano, cuja ascensão teve início quando o Mappin, em 1939, atravessou o "novo" Viaduto do Chá e se instalou na Praça Ramos de Azevedo, bem defronte ao Teatro Municipal, não parou mais de crescer.


Novas salas de exibição foram agregadas às já existentes na área, ilustrando o período de riqueza vivido pela capital de um estado que, ainda muito rico na agricultura, ampliava sua vocação industrial. Todos os bondes da cidade - dezenas de linhas - ostentavam essa condição com um cartazete: São Paulo, maior cidade industrial da América Latina.


As novas salas de exibição, como Marrocos, Marabá e Ipiranga, excediam, em muito, os padrões até então conhecidos no Brasil. O Ipiranga, por exemplo, tinha um balcão nobre cujas poltronas possuíam generosas medidas. O o a esse balcão era feito por elevadores. Alguns desses novos cinemas ofereciam, aos sábados, a sessão da meia-noite.


Arquitetura, cultura e artes, a partir de 1940, começaram a assumir papéis relevantes na vida da cidade.


São desse período a criação do Museu de Arte e do Museu da Arte Moderna, as inaugurações da primeira emissora de TV no Brasil, da nova sede da Biblioteca Municipal, a criação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, a inauguração de novas casas de espetáculos, além do TBC, com programação permanente, como as duas salas do Teatro de Cultura Artística, Teatro Maria Della Costa e o Teatro de Arena encenando autores e temas brasileiros num novo modelo de espaço teatral.


Editoras e o Clube do Livro - com tradução de clássicos estrangeiros e publicação de autores brasileiros -, o Clube dos Artistas (o "Clubinho" dos artistas plásticos) e a Bienal de Artes Plásticas, a construção da sede do Instituto dos Arquitetos, a contratação de Niemeyer para projetar o Parque Ibirapuera para os festejos do IV Centenário de São Paulo, a realização do Festival Internacional de Cinema naqueles festejos de 1954, o ginásio e o estádio do Pacaembu, o maior do Brasil antes da inauguração, dez anos depois, do Maracanã, a construção do novo hipódromo na Cidade Jardim, a aparição do "Sirva-se", primeiro supermercado do país, da Fenit, feira têxtil e pioneira de outras tantas criadas por Caio de Alcântara Machado, chegada do primeiro reator de pesquisa no Brasil, na USP, dão uma vista parcial do grande ciclo da economia paulista e de como o dinheiro foi transformando a província numa metrópole.


Decidi que, para ser somente um homem de teatro, teria que abandonar tudo do que eu era e, no Carnaval de 1955, desembarquei no Rio.


Aquela São Paulo de 1950, com dois milhões e meio de habitantes e onde o bonde era o veículo de massa eficiente, não existe mais.


No Rio, comecei a realizar meu projeto pessoal, transitei fazendo teatro em outras geografias e ainda resolvi caminhar fazendo novos caminhos.


Um desses me colocou aqui, conversando agora com você.


Inté.

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Autor
Mario de Almeida é jornalista, publicitário e escritor.

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