A censura tem muitas faces
Durante o longo inverno político, os brasileiros acostumaram-se a consumir somente a produção cultural liberada segundo o cânone de mentes tão luminosas quanto os …
img src="fotos/coluna_eliziario_01_10.jpg" align="right" border="1"> Durante o longo inverno político, os brasileiros acostumaram-se a consumir somente a produção cultural liberada segundo o cânone de mentes tão luminosas quanto os porões que freqüentavam. As decisões dos censores, tomadas com a lucidez de morcegos num home teather, circulavam entre o patético e o perverso. Miríades de pareceres ridículos, dos quais poderíamos achar graça caso não fôssemos as vítimas, atulham ainda hoje os arquivos da censura.
Minha geração, jovem demais para se engajar em aventuras revolucionárias, mas velha o bastante para abrigar certa consciência, ainda que temporã, foi brindada, entre outras relíquias, com as bolas-pretas destinadas a cobrir as "partes pudendas", como, por certo, escreveu o censor, dos personagens do filme Laranja Mecânica. O mais risível era ver as tais bolas deslocando-se pela tela sempre com atraso, como o som descasado dos movimentos labiais em filmes mal dublados, algo na linha Fucker and Sucker.
Baseada em romance de Anthony Burgess, a obra-prima do diretor Stanley Kubrick, lançada em 1971, foi proibida em países de variados matizes. No Brasil, permaneceu engavetada até 1978, quando recebeu as tais bolas pretas. Kubrick, prudentemente, desautorizara a exibição com qualquer tipo de corte. Como sempre, a censura reforçou o mito. Nesse caso, merecidamente. Muitas obras de baixo quilate tornaram-se objeto de veneração graças à marqueteira tesoura da censura, mas isso é outro capítulo.
A censura tem muitas faces, entre as quais a econômica. A Rede Globo, decidida a não veicular marcas às quais não possa emitir fatura, adotou o hilário expediente de desfocar placas em reportagens de rua, por exemplo. Há alguns anos, Zero Hora resolveu omitir o nome dos patrocinadores de clubes esportivos, incluindo Grêmio e Inter. Como ainda não ingressara na modernidade tecnológica, um funcionário do fotolito atacava com um pincel as celebradas camisetas. No último sábado, a Globo levou a diretriz ao paroxismo. O músico Davi Moraes apresentava-se com o pai, Moraes Moreira, no Altas Horas de Serginho Groisman, vestindo uma camiseta vermelha com uma inscrição no peito. Preferencialmente, foram editadas as imagens em que aparecia de lado. Quando era inevitável mostrá-lo de frente, um retângulo vermelho saltitava freneticamente para encobrir o que deveria ser o lettering de algum "não anunciante", portanto, incluído no índex do departamento comercial. Revelou-se eficiente, ao contrário das bolas pretas. O Terra cobriu as gravações, e, estranhamente, também no site as fotos só captam ângulos laterais. O índex está podendo.
Dedicado a Lúcia Brito
(
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