A Carta para o Papai Noel
Como não reparei em nenhum movimento estranho na janela da sala do apartamento, desde que pendurei cuidadosamente, no mês ado, o sapatinho na janela, …
Como não reparei em nenhum movimento estranho na janela da sala do apartamento, desde que pendurei cuidadosamente, no mês ado, o sapatinho na janela, resolvi apelar para as técnicas mais antigas e escrever uma cartinha para o Papai Noel. Antes de recorrer ao correio para enviar minha lista de pedidos, tentei ainda conectar-me com o bom velhinho por telefone e email. As duas alternativas fracassaram. Apesar das teses de que Papai Noel está plugado na tecnologia, a operadora de telefonia do Polo Norte enfrentava problemas técnicos em razão de uma nevasca e nem sinal (literalmente) de telefone móvel, celular ou banda larga.
Quase resignada e tentando a concentração, peguei papel e caneta para escrever a cartinha. Apoiada no braço esquerdo do sofá, televisão ligada para não perder o hábito, rabisquei algumas frases de introdução e expliquei ao Papai Noel a dificuldade na comunicação. Com esta justificativa, imaginei que ele perdoaria a demora da carta e não faria nenhum tipo de retaliação na entrega das minhas encomendas. E comecei a pensar nos presentes que pediria neste Natal. Pela ordem de importância e não pelo valor financeiro.
Um carro popular. Um notebook para dividir melhor o computador com a minha filha. Uma televisão com mais polegadas talvez não me incomodasse. Ok, uma mega-aparelhagem de som para ouvir meus cantores preferidos e me sentir poderosa e sair repetindo as músicas. Quem sabe um robô doméstico que fizesse o supermercado, organizasse depois as compras e nas horas de folga cuidasse da casa? Sem nenhuma vinculação trabalhista, é claro. Nem emocional.
Todas essas ideias de presentes povoaram a minha mente por escassos segundos. O tempo mínimo e suficiente para me lembrar que nenhum dos mimos liderava as minhas prioridades. Para me alertar que a felicidade não estava relacionada à posse daqueles produtos. E me conscientizar que em algumas vezes é feita uma divisão social. Ainda longe da sonhada. Enquanto uns desfrutam de riqueza material, outros usufruem de bens sentimentais, de valores tão altos que nem todo o dinheiro do mundo é capaz de comprar, aqui ou no Polo Norte. A utopia é desejar que as duas riquezas não sejam excludentes.
Na tentativa de escrever para o Papai Noel, já que falar com o próprio em algum shopping não combina com a minha idade física, descobri que sou da categoria dos abastados em bens sentimentais. E que não me cabe pedir mais nada ao Papai Noel ou qualquer outra pessoa superior. Deveria sim escrever uma carta, ou quem sabe até um relatório, para agradecer tudo que já ganhei e que não tem preço. O amor da família, uma educação privilegiada, dinheiro para alimentação, amigos fiéis, empregos satisfatórios, leitores cativos, encontros e desencontros, porque só assim que se cresce.
Se ainda arriscasse reclamar de boca cheia, recebi de mãos beijadas, há 15 anos, o presente mais especial, indescritível e incalculável que alguém jamais pensou: uma filha saudável, inteligente, carinhosa e companheira chamada Gabriela. O resto de tudo é lucro depois disso. Capaz de, no balanço final, eu ficar devendo ou pagar em prestações intermináveis. E seria egoísmo ficar alugando o tempo do Papai Noel que está cheio de demanda nesta época. Por isso, desisti da cartinha.