A bruxa solta

Ao sair do cinema, Fu Lana até poderia ser assaltada e morta na sinaleira, estaria satisfeita. Afinal, seria o seu destino. Ela teria nascido …

Ao sair do cinema, Fu Lana até poderia ser assaltada e morta na sinaleira, estaria satisfeita. Afinal, seria o seu destino. Ela teria nascido e vivido para encontrar ali, na encruzilhada, a sua sorte ou azar final. Isso é o que dá assistir a um filme rodado na Índia, se bem que sob ponto de vista inglês.


Polêmicas à parte, querendo ou não itir, consciente ou sob efeito do subconsciente coletivo, os dez primeiros minutos de Slumdog Millionaire lembram de fato o filme brasileiro tipo exportação Cidade de Deus. Até o diretor de fotografia do filme de Fernando Meirelles itiu que tem um fã e amigo na equipe de Danny Boyle: casualmente, o diretor de fotografia. A saturação das cores com alteração digital também foi utilizada nos dois filmes e deu supercerto. Teve até um sujeito que afirmou: se a câmera descesse para o plano da galinha, eu saía correndo do cinema. Bota semelhança nisso.


No entanto, não se arvorem os candidatos a injustiçados pelo mundo do cinemão: foram apenas os momentos iniciais do filme. A dimensão das favelas em Millionaire é muito maior. Afinal, são 65 milhões de pessoas que vivem naquela situação sumária e insalubre, população que, inclusive, rejeitou o produto final cinematográfico. A palavra em indiano utilizada na tradução do filme ficou em algo como cão de rua, ou vira-lata, e não agradou. É a mesma rejeição, aliás, que gerou o Cidade no Brasil. Aqui, as críticas vieram contra o uso da estética da fome. Lá, contra a pornografia da miséria.


O soco é forte. Na primeira meia hora de filme, tirando o corre-corre das crianças à la Cidade de Deus, Fu Lana pensou: mas como é que este filme foi ganhar o maior Oscar? Choques elétricos, afogamentos provocados, judiarias em geral. Qualquer cidadão brasileiro tem o sofrimento na memória e a pobreza não é novidade. Ocorre que Fu Lana teve um revival inusitado. Lembrou de A pequena órfã, novelinha de Teixeira Filho, de (uau!) 1968, da TV Excelsior. Deve tê-la visto em outra vida. A menina sofria todo o tipo de sacanagem e apesar de nada parecido com a crueldade de Millionaire, as primeiras lembranças infantis abrigam os maiores monstros.


E a viagem no tempo continuou. Só parou em 1970, em Meu Pé de Laranja Lima, o filme, onde o menino Zezé apanha pacas, daquela irmã mais velha e do pai, e ele também tem um irmão mais velho, metido a besta. Ainda por cima, perde o Portuga, seu melhor amigo, em uma tragédia inesperada. Deus dá o drama conforme a posição social.


E Millionaire não poupa seus órfãos fugitivos sem apelar para as lágrimas. Tudo é tão cruel e assustador, que, perante tanto horror, não dá tempo para choramingar.


Depois disso tudo, ufa, o filme amadurece e finalmente nos conquista. Obviamente, é quando nos transformamos naqueles milhões de indianos hipnotizados pela tevê, que torcem para que um garoto desconhecido e miserável fique podre de rico e saia dali, o mais rapidamente possível.


De todos os oito Oscares, o roteiro adaptado carrega o piano. Escrito por um diplomata indiano, o livro Q&A não continha os truques divertidos que recheiam a trama. E, nesta clonique, não teria graça nenhuma se Fu Lana entregasse o jogo. Só se pode adiantar que é como ir do inferno ao paraíso. Do extremo clichê ao surpreendente sorriso de uma última pergunta.


Ops. Peraí: quem não viu o filme antes da premiação, não terá condições de julgar a própria decisão sobre se o filme merecia ou não o maior prêmio do cinema mundial. A causa é uma visão contaminada ultracomprometida. Apenas um detalhe confessional: Fu Lana não conseguiu até hoje ter coragem de assistir a Trainspotting, do mesmo diretor. Sabe-se lá de qual baú sairiam suas memórias esquisitas desta vez.

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