A arte é autônoma?
Quando vamos a uma exposição de arte e não temos nenhuma informação sobre o que está exposto, e é sempre assim (ou seja, o …
Quando vamos a uma exposição de arte e não temos nenhuma informação sobre o que está exposto, e é sempre assim (ou seja, o autor não está presente para explicar), o que acontece é que as pessoas entendem o que querem, o que conseguem e até não entendem nada. Na verdade, para tirar algum prazer dessas visitas, qualquer informação é bem-vinda. Basta a gente informar-se nem que seja apenas um tanto e tudo a a fazer sentido.
Foi assim, de sangue doce, que Fu Lana colocou os pés da Usina do Gasômetro, em Porto Alegre, para uma visitação das obras dos cinco artistas vencedores do Prêmio CNI Sesi Marcantonio Vilaça. Pra começar, quem foi esse cara? Um galerista pernambucano, "um mecenas que apostava na força e na energia criativa". Fu Lana quase decorou essa frase do catálogo, já que não iria levá-lo para casa. Abandonou-se nas alas da exposição, sem nada predeterminado. Continuava testando sua capacidade de apreensão e observação. Como apreciar a arte sem saber de nada. A obra era de Lucia Koch. Estavam encostadas na parede duas enormes telhas translúcidas, revestidas de cores. Uma, no sentido horizontal e outra, no vertical. Ali, pertinho, uma maquete. As mesmas telhas apareciam desenhadas, em planejamentos arquitetônicos. Salvi, Giorgi? Quem seriam? As fotos de um "Morro da Glória" faziam crer que era em um daqueles casebres que as telhas seriam colocadas. Dava pra ver uma pobreza de danar. O que a artista iria fazer? Colocar telhas coloridas em uma das casas empilhadas no morro? Desenvolver planos e estudos de ventilação para o uso de pessoas hiperpobres? Fu Lana estava se esforçando, mas ficava difícil entender, panaca que é. Então, foi tateando. Em outro conjunto de obras, estavam as caixinhas. De novo? Dentro delas, foram colocadas fotos de pessoas, de coqueiros, outra telha, agora de tetrapak, e uma flauta de cano. Socorro! Ao lado, um aparelho de cd continha sons de música new age, meio mística. Nenhuma palavra. Desistiu. ou para outro conjunto. Algumas placas de metal recortadas e outras de acrílico. Fotos de outras pessoas, novas plantas, esboços, estudos arquitetônicos. E de outro estúdio de arquitetura. Caracas. Sem legendas, não dá. Fi-nal-men-te, ela percebeu em uma caixinha diversos panfletos que continham (iurru!) explicações. Leu todinho. Trazia um texto do curador, explicando (graças a Deus) do que se tratava. E, de repente, tudo ou a fazer sentido. Palavra é tudo! Papel é tudo! O trabalho de Lucia traz essa característica de influenciar o ambiente. Qualquer ambiente. Ela já modificou, com a luz (através de vidraças e telhas coloridas), ambiente até em Istambul. E a proposta nesse trabalho era modificar um ambiente modesto. Uma casinha menor, nas favelas e morros. Daí os planos arquitetônicos. Ela agrupou para isso alguns companheiros de trabalho, arquitetos. Estava explicado. Ela conversava com as pessoas daquelas famílias (daí as fotos de diversos grupos familiares), e descobria seus hábitos. Uns tocavam música (daí a flauta de cano e o cd, produzidos pelos moradores da casa), outros faziam cintos de fibras (daí os coqueiros). As placas de metal foram produzidas com base em cobocós, que são tijolos vazados que fazem um gradeado bonito e que visualmente são aproveitados pela artista nas estruturas de metal e acrílico, utilizados como divisórias. E fez-se a luz. Fu Lana ficou arrepiada e aliviada. Faltava era a informação. Disposição ela tinha.
Foi para outra sala. Já procurou direto um panfleto. Não havia. ou a devorar as legendas dos trabalhos. Tratava-se de fotos chamadas Projeto Morrinhos. Pareciam brinquedos de criança montados em tijolos. As fotos pareciam estouradas de cor e nas bordas estavam um pouco borradas. Havia também um mapa, feito a mão, e, pelo que se via, era uma descrição de um morro feita por algum adolescente. Bingo. Foi assistir a um filme explicativo que faz parte da exposição e estavam lá. As fotos foram feitas em máquinas que na verdade são latas. Câmaras escuras. E os morrinhos eram miniaturas do ambiente que as crianças viviam, crianças que participaram por vários anos desse projeto. A artista chama-se Paula Trope. E as fotos (as maquetinhas, o mapa) foram feitas pelos próprios meninos. Tudo explicado.
Nova obra, de Renata Lucas, mostrava fotos de uma sala de aula. Essa não precisava mesmo de explicação. São duas seqüências em que se percebe uma aglutinação de mesas e cenas que am no quadro-negro. A relação entre o que acontece no quadro com as mesas e com a seqüência diz tudo e não há necessidade de explicação. O filme ajuda, nesse sentido, a conhecer as inquietações dessa menina, que, em outra de suas obras, põe radinhos em muros (funcionando) e carros em lixeiras. Estacionou do lado de uma lixeira, segundos depois, o carro está no lixo, em uma simbiose urbana.
Outros dois premiados trazem es mais tradicionais. Aquarelas, no caso de Thiago Rocha Pitta, com a obra "Anotações de viagem ou esboços para uma carta de amor". Como ele consegue pintar sem chegar ao visível? pergunta-se Fu Lana, com dor de cabeça para enxergar algo naquela atmosfera de tinta preta e branca. É como se ele preferisse viver em um esboço. Outra vez o filme só vem para acrescentar. O cara é fã de William Turner, o pintor inglês, de atmosferas, precursor do impressionismo. Em uma homenagem a esse pintor, Thiago colocou um barco em um rio e tacou fogo nele. Gravou tudo com a ajuda de amigos ligados ao cinema. E diz ele: "o objeto deixa de ser objeto para ser luz. Uma estrela flutuando ao sabor da maré". Fu Lana elege a palavra, a grande campeã do pedaço.
E encontra na artista premiada Marilá Dardot, uma companheira em valorizar a leitura. Ela digitalizou um livro inteiro e apagou o que quis apagar. O que sobrou, Fu Lana não conseguiu ler, pois deveria dedicar mais tempo a suas visitas à arte. É da vida. Mas o trabalho estava lá. E no filme (santo filme) Marilá apresentava um outro trabalho onde criou vasos em forma de letras e as pessoas plantavam coisas neles e os agrupavam ao bel-prazer dando sentido à vida. Loucura total. Nunca uma exposição foi tão profícua. E olha que tem gente que entra, olha, não percebe metade da missa e sai comungando.
Uma última olhada no catálogo revela que os artistas que poderiam concorrer deveriam ter nascido em ou depois de 1962, data que coincide com o nascimento de Vilaça, que morreu super-jovem, não se disse de quê, em 2000. A questão que fica disso tudo é: a arte é um pensamento autônomo? Total, mas com legendas, por favor?