40 anos sem Dona Elis (*)
Por Márcia Martins

Final da manhã de 19 de janeiro de 1982. Como é tradicional em Porto Alegre, nesta época, a terça-feira, naquele horário já apresentava temperaturas muito elevadas. Apesar de alugar um apartamento imenso na rua Tomás Flores, no bairro Bom Fim, minha família não tinha grandes posses e, por isso, todas as janelas da sala estavam todas abertas. Enquanto colocava a louça sobre a mesa para o almoço deliciosamente preparado pela mãe Mirthô, deixava a televisão ligada. Tempos sem internet. Em plantão, o locutor com sua voz empostada informa a morte de Elis Regina.
Totalmente desnorteada, deixei minha emoção fluir e chorei muito (quem me conhece a fundo dirá que isso não é difícil), mas naquela ocasião em que a voz da melhor cantora do País e do mundo calava-se, eu não consegui segurar as lágrimas. Recusei a comida servida pela mamis para a família (acho que estava completa naquele ano), não ocupei a ponta da mesa oposta ao local que sempre fora destinado ao meu pai, ei a tarde trocando os canais da televisão atrás de informações e com o ouvido colado no rádio de pilha. O tempo todo consolada pela minha mãe, fã de Elis, mas não tão fanática quanto a filha.
A seis meses de completar 22 anos, precisei de muita insistência e chateação para convencer meus pais de que eu iria sim ar a noite na vigília chamada às pressas para o Auditório Araújo Viana, ali pertinho de casa, para homenagear a perfeita, a insuperável, a mais completa intérprete que este Brasil já conheceu. Uma noite inteira embalada por vozes comuns e desafinadas entoando os sucessos da Elis, a Eliscóptero (apelido dado a partir do balanço de seus braços ao defender a canção "Arrastão", de Vinícius de Moraes e Edu Lobo - primeiro lugar no Festival da TV Excelsior, em 1965).
Desde aquela manhã, há 40 anos, meu remorso por não ter ido ao show de Elis intitulado "Trem Azul", no Gigantinho, em Porto Alegre, no dia 19 de setembro de 1981 (pela falta de dinheiro) fez eu prometer nunca mais deixar de prestigiar espetáculos culturais de meus ídolos. Um tanto de Scarlett O'Hara no filme "E o vento levou", em que ela diz: "jamais sentirei fome novamente" diante da fazenda da família destruída. A partir da morte de Elis e da minha ausência na plateia do "Trem Azul", peço dinheiro emprestado, atraso alguma prestação, parcelo o ingresso no cartão de crédito, mas não perco show de quem sou fã assumida.
Morta prematuramente aos 36 anos, Elis Regina ainda hoje é muito ouvida, irada, idolatrada e, principalmente, cada dia mais necessária e insubstituível. Se fosse escolher poucas músicas na sua interpretação gastaria colunas e colunas aqui do portal. Impossível selecionar. Toda canção que ganhou a voz de Elis ficou marcada e dissociá-la do nível de perfeição que a cantora colocava é missão impensável.
Mas, se alguém quiser saber um pouco mais sobre esta mulher simplesmente incrível, maravilhosa, surpreendente, com a língua afiada e inteligente, sugiro três livros para leitura. "Nada será como antes" do jornalista Júlio Maria, lançado em 2015; "Elis, uma biografia musical", do jornalista, músico e arranjador Arthur de Faria e "Elis e eu: 11 anos, 6 meses e 19 dias com minha mãe", escrito pelo primogênito da cantora, João Marcello Bôscoli, fruto do seu primeiro casamento com o compositor e produtor musical Ronaldo Bôscoli.
Costumo dizer que a Pimentinha, mãe do João Marcello, Pedro Camargo Mariano e Maria Rita, também cantores, está cada dia mais presente. E, talvez para me compensar pela falta do meu aplauso no "Trem Azul", me dei de presente de Natal o CD "Elis, essa saudade", lançado no início de dezembro do ano ado. Nele, Elis emociona em todas as músicas (isso é redundância), mas destaco a faixa "Pequeno Exilado", dueto gravado com Raul Ellwanger e fora de catálogo há 41 anos. Mais um para a minha coleção de LPs, CDs e DVDs de Elis Regina.
(*) Dona Elis é como a sua filha, Maria Rita, que tinha apenas 4 anos quando a mãe morreu, refere-se à cantora em seus shows.