24 horas

O sucesso do seriado 24 horas vem de uma idéia simples: todos gostariam de ter um dia absolutamente intenso. Mesmo sob constante perigo, a …

O sucesso do seriado 24 horas vem de uma idéia simples: todos gostariam de ter um dia absolutamente intenso. Mesmo sob constante perigo, a vida do agente especial Jack Bauer representa a quebra do tédio que toma de assalto o cotidiano de pessoas normais. Mas nunca deseje algo assim, pois pode acabar lhe acontecendo, e de forma pouco invejável.

Aos poucos, vão-se formando em minha mente as memórias de 24 (na verdade 36) horas memoráveis que vivi, para o bem e para o mal. Foi o dia mais longo de minha vida.

7 DE ABRIL DE 1998


15 HORAS

Estou sentando à minha mesa de trabalho no prédio de Zero Hora, dividindo minhas atenções entre a Agência RBS de Notícias, a Central do Interior e a Sucursal de Brasília, áreas sob minha coordenação. Recém retornei de uma temporada na capital da República e me readapto a Porto Alegre. Acabo de sair da reunião de pauta de ZH e cumpro despachos de rotina quando o telefone toca. Elise, minha filha então única, de quatorze anos, mas desde sempre uma pessoa serena, dá a notícia do melhor jeito que pode: "Pai, a avó Mila (como ela chama a bisavó, Maria Emília), está mal, caiu no banheiro, está desacordada, já chamei os paramédicos, eles estão chegando, e a Santa (apelido de minha mãe) está lá com ela". Minha mãe, ao contrário da neta, não costuma manter o controle em situações difíceis. Ligo imediatamente para Solange, com quem trabalhei no Hospital Conceição e minha amiga até hoje, e peço que fique a postos, caso eu precise de ajuda.

15:15

Depois de mais algumas ligações, visto o paletó e estou pronto para correr até a casa de minha mãe e minha avó quando Elise volta a ligar. "Pai, ela morreu". Minha avó era de fato uma segunda mãe, uma vez que minha mãe sempre trabalhou "fora" e ela praticamente me criou. Sou ótimo para tomar providências quando o assunto não é comigo. Neste caso, e considerando-se o tipo de providência, é outra coisa.

16:00

Chego ao Jardim Lindóia, onde elas moram. Logo chegam a Solange, meu sogro, meus ex-sogros. À ex-sogra peço que leve minha filha, que não precisa ar por nada daquilo. Os sogros me ajudam com a burocracia enquanto Solange começa a cuidar da parte mais chata, pelo que serei eternamente grato.

17:00

Ligo para minha mulher, minha sogra atende, e aviso que vamos mentir. Viviani esta grávida de nove meses, o bebê é esperado para qualquer momento, e ela bem pode ser poupada de notícias desagradáveis, ao menos por telefone. Minha sogra me ajuda a disfarçar. Oficialmente, minha avó teve um desmaio, inspira cuidados, ainda mais na idade dela, mas é só, por enquanto.

22:00

O corpo de minha avó já está no cemitério. A noite torna tudo mais terrível. Mesmo no Jardim da Paz, o mais belo possível para a função. Ligo de tempos em tempos para saber se minha mulher está bem. Está, mas preocupada. Ainda não conto.

8 DE ABRIL


3:30

Minha mulher liga. Começaram as contrações. Junto com um cunhado, corro para minha casa, no Menino Deus. Antes de levá-la para o hospital Mãe de Deus, ela pergunta, como quem já sabendo a resposta, e não posso mais negar. Finalmente, ela sabe da morte. No hospital, o atendimento de praxe, e a notícia de que as contrações deveriam estar mais freqüentes. Ninguém diz, mas induzem que pode haver complicações. Enquanto isso tenho de ficar ausente do velório.

08:00

O médico telefona de casa, pede informações às enfermeiras, diz que está indo para lá, mas avisa que, pelo quadro descrito, ainda vai demorar. Deixo minha mulher na maternidade e corro para o cemitério.

10:00

Minha avó é enterrada. Com ela, vão alguns anos de minha vida.

10:10

Olho no relógio. Acabo de deixar uma vida ali, mas tenho de receber outra. O celular toca: a bolsa arrebentou. Corro para o hospital.

10:30

Quando chego ao hospital, Viviani já está na sala de parto. Visto a roupa de praxe, com touca e sapatos de pano, pego a câmera fotográfica e entro. Ela está bem, recebeu anestesia local.

11:10

Lísia vem ao mundo, forte, saudável. Acompanho banho, pesagem, medição e sua ida ao berçário.

12:00

Enquanto ambas se recompõem, e tendo minha mãe amparada pela neta, pelos meus sogros, pelos amigos, vou para casa sozinho. Antes o no Shopping Praia de Belas e deixo o filme para revelar.

12:30

Em casa, ligo para meu pai em seu sítio na distante Luziânia, a quarenta minutos de Brasília. Dou ambas as notícias. Tomo um banho para acordar. Apanho alguns objetos pessoais de minha mulher e coloco em uma mala.

14:00

Volto ao shopping, compro um álbum, edito as fotos e retorno ao hospital.

15:00

Viviani acorda e encontra as fotos. Em poucos minutos Lísia está conosco. Depois vêm a família, os amigos.

20:00

Vou a uma padaria defronte e compro pães, frios, cervejas. Como estávamos na suíte, havia um quarto separado para mim, com outra porta inclusive, excelente para conter o excesso de pessoas ao mesmo tempo no quarto principal.

00:00

O vaivém das enfermeiras ainda não acabou, mas consigo preparar uma refeição.

03:00

Enfim adormeço, entre perdas e ganhos.

Jamais consegui reduzir a impressão de que minha avó partiu porque havia carência de almas no mercado, ou algo do gênero. Ela sempre gostou de prever coisas, havia dito a Viviani que ela estava grávida antes de a própria ter conhecimento disso. Vai ver sabia de algo que talvez um dia eu venha a saber.

Ainda naquele ano, eu perderia o sogro e o emprego. Lísia salvou uma temporada difícil.

Em 2000, já em São Paulo, ganhei Milla, a terceira filha, iniciei uma carreira de escritor e perdi meu pai.

Eliziário Goulart Rocha é jornalista e escritor, autor dos romances SILÊNCIO NO BORDEL DE TIA CHININHA e DONA DEUSA E SEUS ARREDORES ESCANDALOSOS e da ficção juvenil ELYAKAN E A DESORDEM DOS SETE MUNDOS. É Diretor de Redação da revista FORBES BRASIL e escreve semanalmente neste site. Esta é sua 100ª coluna na Coletiva.

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Autor
 Eliziário Goulart Rocha é jornalista e escritor, autor dos romances Silêncio no Bordel de Tia Chininha, Dona Deusa e seus Arredores Escandalosos e da ficção juvenil Eliakan e a Desordem dos Sete Mundos.

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