0,064% de cultura

A SEDAC ? pra ser sedada só falta o sufixo ? ainda está em banho-maria. Daí, se algum choque térmico cultural houver, nunca será …






















A SEDAC - pra ser sedada só falta o sufixo - ainda está em banho-maria. Daí, se algum choque térmico cultural houver, nunca será pela fervura. Dependerá do freezer onde a secretaria for parar, no novo governo. Brrr.

Coisa mais maluca que é essa discussão. O ponto inicial da polêmica é uma cifra chinfrim. Fatias de um bolo se consegue imaginar e babar ou reclamar. Migalhas de uma fatia, só dá pra reagir negativamente. Zero vírgula zero de qualquer coisa mínima é mícron. Doideira, isso.


Na melhor das hipóteses, se tudo apenas continuar como está (que conjetura otimista, Fragal!), já dá pra antever a política cultural posta em prática - o impraticável praticado a 0,064%. Indigitado índice. É praticamente um exercício de fantasia, e fantasiar a cultura é tudo que nos resta.


Quanto é 0,064% da atual penúria cultural do RS? Uma nesga do pingo do i ou, sei lá, uma raspinha do acento agudo? Bão, poderia ser uma ínfima parte da menor serifa de qualquer letra, mas nem serifado este texto é. Contrariando meu ceticismo, sempre no piloto automático, devo exemplificar me atendo à realidade.


0,064% aplicados na literatura significa, obviamente, um incentivo à produção de mini-contos e a publicação de opúsculos. Tudo escrito com monossílabos e minúsculas, e uso de tocos de lápis. Na poesia, apoio ao hai-cai.


0,064% à disposição da música, pra combinar com a retração dos recursos, quer dizer todo destaque às composições em ré, menor naturalmente. Quanto às sinfonias, quanto mais inacabadas melhor. A OSPA vai ser reduzida pra orquestra de câmara e as orquestras de câmara para duos. Nos shows, prevalecerá o banquinho e o violão. No carnaval, o samba-enredo será adaptado para samba-legenda.


0,064% dotado às artes plásticas resultará na eleição do minimalismo como gênero e da miniaturização como expressão. Abaixo murais e painéis. As mini-galerias serão as mais favorecidas. Nos vernissages, pão e água (à vontade para os artistas mais valorizados).


0,064% no cinema indica que a produção deverá contemplar somente os curtas-metragens. Filme mudo e em p&b ganharão as maiores cotas. 35mm e 70mm nem pensar: o 8mm e o super-8 voltarão com toda a força. Os grande elencos serão preteridos por duplas. Animações perderão a vez para desanimações. E
as exibições, só nas menores salas dos multiplex.


0,064% para o teatro representa ênfase nos monólogos. Se for inevitável peças com muitos personagens, o elenco terá dois ou três atores, que farão múltiplos papéis. Encenações à luz de velas, ausência de cenários e, para poupar nos figurinos, nu frontal, traseiral e lateral. Para a contenção de custos, tragédia e comédia serão fundidas. Todo estímulo ao teatro do oprimido e ao espetáculo mambembe.


Ainda não foi possível calcular perdas e danos desse percentual sobre as demais áreas culturais. Imagina-se que a dança vá dançar conforme a música e que a mímica, que já estava quase parando, poderá paralisar. No resto, o que vai variar é o grau de sacrifício. O amor à arte poderá se tornar moeda corrente nos cofres públicos.


Sobre a LIC, o seguinte: pra eliminar as dificuldades de interpretações e diminuir as polêmicas, será transcrita para o esperanto, ou o sânscrito, não tá decidido. E todos - dos criadores aos produtores, dos patrocinadores ao público - que questionarem sua natureza complicadora serão taxados. De inconvenientes.


Já a pior das hipóteses, ah, essa não é hipotética.

Definigções

Batom - Cosmético que provoca mais apertos no colarinho que a gravata.


Conivência - A convergência da convivência com as conveniências.


Gaveta - O Triângulo das Bermudas dos móveis.


Grandiloqüência - A falta do que dizer elevada à perfeição.


Pontapé - Golpe curto e rápido, utilizado na tentativa de desemperrar parafusos quando nada mais funciona.


Segredo - Certa informação sussurrada de boca em boca.


Vaga - Espaço funcional inexistente.


Etc.

Autor
Fraga. Jornalista e humorista, editor de antologias e curador de exposições de humor. Colunista do jornal Extra Classe.

Comments