Matar os próprios filhos. Como subtrair disso algum sentido? Medéia está em cartaz. Em cada um, Medéia sempre está em cartaz. Quantas vezes desejamos coragem para libertar o sentimento de vingança contra a rejeição e quantas vezes não quisemos atacar os que amamos? Doentes somos todos sequer ao pensarmos sobre isto. Por isso, o teatro existe. Para falar por nós. Para nos ensinar a pensar sobre o impensável, tergiversar sobre o calamitoso e sobre a tragédia. Coloca-nos em uma situação improvável, não desejada, para verter em nós a reação mais selvagem, da qual fugimos à luz do cotidiano. 682x1l
No teatro, a tragédia parece amena. Na montagem de Luciano Alabarse, de Medéia, a racionalidade é derrubada ainda em cena, com a presença de dois anjinhos de carne e osso. Duas crianças lindas, que apenas existem. Brincam de cinco marias, correm, divertem-se discretamente, mas estão ali, de fato. São filhos de Medéia verdadeira. As crianças em cena dão a necessária tragicidade ao ato terrível tantas vezes prometido. Entendemos por que ela planeja, recua, teme, tenta, revela e toma, finalmente, a decisão. Não é uma peça moralista. Jasão, para nós mulheres, merece sofrer mais do que por uma morte qualquer, seja da nova esposa ou de seu pai, Creonte. Merece as maiores chagas por ter rejeitado uma mulher que não mediu esforços para que ele alcançasse o sucesso. Quando troca Medéia pela herdeira do trono, todo o ódio é perfeitamente compreensível. Até que entram em cena os tais anjinhos. Que coragem e que loucura se abateram sobre ela.
O público chora, discretamente. Talvez também pela ação lamentosa do coro, que faz um espetáculo à parte. Claro que, depois de Woody Allen, nenhum coro grego se apresenta incólume. Fica-se pensando: "Oh! não, o coro de novo?". No entanto, é apenas um sentimento vulgar, ageiro. São resquícios da memória do showbusiness e do entretenimento.
A ameça em Medéia é permanente. A ameaça da ação que é arquitetada e ainda reversível e a antitragédia, quando o homem pensa poder mudar o que querem os Deuses. No duelo com o fatalismo e a vontade.
Fu Lana conheceu uma Medéia urbana, em uma comunidade chamada Vila-do-meio-dia. De Chico Buarque e Paulo Pontes, com Bibi Ferreira no papel de Joana/Medéia. Jasão era um compositor que, rendido aos encantos do empresário Creonte e de sua filha, abandona a pobre e furiosa Joana e seus dois filhos por uma nova vida. O lamento é o mesmo e a injustiça está feita. Joana/Medéia acaba com a vida dos filhos e a de si mesma.
Em Corinto, a história pune Medéia sem o suicídio. Ela casa novamente, com o Rei Egeu, e com ele tem outro filho: Medos. O sofrimento em vida faz a dor mais profunda.
Alabarse acerta também na escolha dos figurinos. Um número considerável de atores e atrizes desfila as mais belas roupas produzidas por Rô Cortinhas, que certamente levará algumas estatuetas-prêmios para casa, ainda em 2007. Ficamos hipnotizados, ora pela ação veemente de Sandra Dani, atriz que comemora no palco 35 anos de atuação, ora pela metamorfose do coro, que se movimenta fartamente pelas diversas situações do cenário. Cores e luzes completam o delírio visual.
Chico nos propõe uma visão adaptada, contemporânea, onde Medéia acontece no meio do povo. Alabarse nos leva ao clássico texto de Eurípedes, que, por sua vez, criou Medéia e seus personagens com base na identidade do povo. Andamos em círculos.
A visão grega é didática. Não permite os cacos. Aprendemos como pensam os homens em relação ao poder fatídico dos deuses e como lamentam suas mulheres, afastadas do poder e do conhecimento. A conclusão do ato trágico culmina com choro e lamúrias que remetem às impotentes mães e viúvas do Oriente Médio, quando sofrem suas perdas de filhos ou maridos e bradam aos céus, em uma contradição explícita ao pensamento ocidental onde acredita-se que Deus morreu.
Nas sextas-feiras, após a peça, o grupo promove debates com convidados na temporada do teatro Renanscença. Em uma destas oportunidades, falava Donaldo Schüller. Fu Lana continuou aprendendo, depois das cortinas cerradas. Aprendeu, por exemplo, que os juramentos naquela época valiam mais do que a força das lanças. Que foram os homens que fizeram grandes as mulheres no teatro, e que isso é apenas uma compensação por terem sido eles, por sua vez, criados pelas mulheres. Um consolo, um lamento e uma verdade. A vida é um círculo vital.