Quixotes no Natal d3b6c

O cinema estava para fechar. O patrocinador não iria mais contribuir com aquela dezena de milhares de reais por mês. A casa era histórica, … 1a1161

14/12/2006 00:00
O cinema estava para fechar. O patrocinador não iria mais contribuir com aquela dezena de milhares de reais por mês. A casa era histórica, tombada, cor-de-rosa. Fôra a moradia de um nobre e ingênuo poeta. Em dois terços da vida, ele não teve o reconhecimento devido. eava, fumando e maquinando as idéias. O cinema iria fechar. Fu Lana precisava fazer alguma coisa. Tradicional em sua rebeldia, não apreciava mudanças assim tão frias e repentinas, como o cessar de um patrocínio.

Aos funcionários restava lamentar o destino incerto. A bilheteira tricotava no inverno, e vendia bombons caseiros que arredondavam as formas dos consumidores e a renda de sua família. O marido, também porteiro e vigia do cinema, debruçava nas olheiras um certo ar vago e cansado. Parado, na porta, olhava para as sacadas do prédio imponente, e já o imaginava vazio e decadente. Exatamente o contrário do que poderia querer para aquele Natal. Fu Lana, então, decidiu. Iria ao cinema, naquela sala condenada, e seria a prova de que há audiência. Há público e deve haver interesse comercial naquele lugar. Incomparável aos cinemas de shoppings, a salinha abrigava cinqüenta pessoas, com lotação esgotada. O ar condicionado, pelo menos, era vigoroso. Na bilheteria, levou também um bombom, para ajudar. 5q4a4m

Satisfeita, aproveitaria para assistir ao filme que saíra do circuito comercial e que ela perdera a oportunidade de ver.

Acomodou-se, abriu o chocolate e já imaginava a reversão da decisão. Afinal, ela era um número positivo, que somava e multiplicava.

Silêncio. O filme iria começar. E o cinema estaria salvo. Dez minutos depois, a tela ficaria escura, para surpresa e desespero da dezena de espectadores. Um barulho lembrava as sessões realizadas em sua infância, na praia, na sociedade dos amigos do balneário, quando o cinema era volante, e as cadeiras eram de palha. Tec-tec-tec, e a fita saía dos trilhos da máquina. Acenderam-se as luzes. Havia gritos de alguém, ajude aqui!! Depois, os abafados pelo carpete. Quinze minutos aram e veio a notícia: a máquina de projeção quebrou e chamamos um técnico. Não será possível continuarmos com este filme. Quem quiser o dinheiro de volta? é só ar na bilheteria. Nas entrelinhas, o mensageiro dizia escurecer também suas festas de fim de ano.

Fu Lana sentiu um cansaço, no mínimo, contemporâneo. As lutas inglórias chegavam ao seu menor esforço. Ou ela assumia uma posição moderna e materialista, dizendo: tem de fechar mesmo! ou concluía que era afinal uma sorte ainda existirem casas como aquela, em que coisas pitorescas poderiam acontecer. Nos shoppings, tudo funciona tão escondidinho, sem que saibamos sequer que existe uma máquina de projeção. A nostalgia vivida na realidade é muito mais gostosa. Será? Resolveu que as lutas contra os moinhos deveriam ficar para os verdadeiros quixotes: os técnicos que consertam máquinas de projeção. O setor romântico e saudosista faz, de fato, um mercado paralelo. As épocas, hoje, se cruzam. Estamos em uma viagem de eras. E Fu Lana não viu o filme.