Fu Lana chegou cedo. Detesta povo, ainda que bem-cheiroso, culto e bem-vestido. Mais de cem humanos juntos já é crawd. Queria chegar dando vexame, jogando um tchauzinho pro Camarote: Oi, Kátia, sou eu, a Fu Lana. Mas ou reto, bem séria, como se não estivesse nem aí, louca para bisbilhotar tudo, desde a produção, as luzes, os convidados. E a Kátia lá, estaqueada e compenetradíssima naquele banco metido à nave. 722273
Blasê, se fazendo, desprezando o povo curioso à volta, Fu Lana comprou o ingresso e, para aprender, levou um ingresso na fila S, lááááá no fundão. Bem feito. Desorganizada, poderia ter antecipado a compra e ficado no gargarejo. Com Fu Lana é assim: é ou oito, ou oitenta mil.
Começa a lotar o Salão de Atos da UFRGS. Queria conhecer o Dr. Ivo Nesralla. Ele seria a Dona Eva de terno, com o pires-balde ando e todo mundo torcendo para ele persistir e conseguir tudo o que deseja? O povo respondeu ao chamado. Quem disse que Porto Alegre não ama sua orquestra sinfônica?
Ao lado, uma senhora comentava: "não é maravilhoso que a Ospa tenha voltado pra cá? Para mim, é tão familiar?". E pensar que até os concertos pela manhã, para as escolas, serão retomados. Essa parceria com a Universidade Federal é tudo de bom. Na memória, Fu Lana sobrevoou a si mesma, deitada no tapete da sala, na frente de uma telinha, no canal 12, curtindo os Concertos para a Juventude, naquele mesmo Salão de Atos. O mundo dá voltas.
Curioso o número de pessoas desacompanhadas que vão apreciar a música clássica. Seria por falta de apoio em casa? No entanto, se considerarmos ser aquele um momento de reflexão, em que não é preciso comentar, nem compartilhar, quando a concentração surge facilmente, é compreensível que assim seja. Ainda mais que havia na tevê um jogo do tricolor.
Fu Lana devaneava ao observar a variedade de antes: idosos vagarosamente subiam as escadas sem corrimão; jovens descolados distraíam-se, com suas cabeças reviradas em cortes indefinidos; outros, já adultos, com os cabelos tingidos e bem-penteados, lançavam imensos sorrisos e também havia os discretos, com os cabelinhos ralos quase virados em nuvem.
Itinerância para a nossa orquestra é palavrão, mas na palavra do presidente da Fundação Ospa, "mesmo com o nosso teatro pronto, voltaremos sempre a esta, que é a nossa casa". Que seja um vaticínio.
Fu Lana procurava imaginar como tudo começou. Quem era Pablo Komlós e qual era o segredo do maestro húngaro que, dizem, era de uma personalidade única, e que adotou Porto Alegre fazendo-a berço de um sonho visionário? Como vivem os músicos da orquestra? Com o que ganham podem sobreviver? Fazem bicos? Aquele rapaz dos tímbales, por exemplo. Nos intervalos de sua participação, limpava com uma flanela a superfície branca de seus enormes instrumentos, tal como se fossem mesas de bar. Seria ele um garçom, nas horas vagas?
Tanto ao chegar como ao sair, Fu Lana cruzou com músicos, em suas camisas impecáveis, brancas, bem-adas. Muitos indo pela noite, a pé com seus instrumentos às costas, em mochilas reforçadas. Pegariam o ônibus? Estariam a fazer outro turno, iriam estudar ou cuidar dos filhos?
A curiosidade matou o gato, mas dá assunto à clônica.
O espetáculo dividia-se em duas partes. A primeira, complexa, era de difícil composição, aparentemente desconhecida da maioria, apesar de ser R. Strauss. A vida de Don Quixote mesclava esforços: suaves como Dulcinéia, tagarelantes como Sancho Pança e impetuosos como o pesadelo e a própria morte.
Na segunda parte, as valsas maravilhosas de J. Strauss. O maestro as regia sem partitura. Fu Lana imaginava-se em salões com casais enrodilhados em arredores de saias. Há quanto tempo já se repetiam as mesmas obras em renovadas interpretações?
Uma menina com uma criança no colo não resistiu: foi flanar no vão das entradas laterais, em rasantes movimentos circulares, enquanto as centenas logo ali, sentadas, não perdiam um movimento sequer daquele grupo de músicos. Qual era o instrumento da vez: o fagote, a clarineta? Os violinos em grupo conversavam com os violoncelos e os contrabaixos. Os metais interrompiam, ao controle de Isaac Karabtchevsky, que ordenava mais intensidade. Nos pizzicatos, quase um murmúrio, os movimentos eram de apreensão daquelas mais de mil pessoas que, curvadas sobre si mesmas, aguardavam a surpresa da próxima nota.
Fu Lana imaginava um jovem compositor dizendo a seus pais: quando crescer, quero fazer os ventos, depois as vagas e criar alguns pássaros de mentira, ampliar e reduzir os espaços, jogar esperanças para o ar. Assombroso como somos capazes de maravilhas.
Dr. Ivo, não desista. Porto Alegre anseia por uma Ospa forte e sempre presente. Com ópera, inclusive. E corais fantásticos que nos lancem em espaços vertiginosos. As pobres almas agradecem, de pé.