<i>Mondo canne</i> 631642

Imagine um navio que parte levando apenas alguns de nós,  deixando para trás uma engrenagem trucidante e cruel. Imagine uma catedral onde o esteio, … 464p4b

06/07/2007 00:00

Imagine um navio que parte levando apenas alguns de nós,  deixando para trás uma engrenagem trucidante e cruel. Imagine uma catedral onde o esteio, o dormente, o eixo central, o apoio máximo sejamos apenas nós, os crucificados. Imagine que não tenhamos dado certo, enquanto espécie. E que, no final, sobreviverá unicamente o assombro. o5c3t

Imagine a palavra Átropos e lembrarás as Moiras gregas irmãs que se chamavam Cloto, Láquesis e Átropos e que determinavam os destinos humanos, especialmente a duração da vida e seu quinhão de atribulações e sofrimentos.

Cloto ("fiar") segura o fuso e puxa o fio da vida. Láquesis ("sortear") enrola o fio e sorteia o nome dos que vão morrer e Átropos ("não voltar", inflexível) corta o fio. Quem terá esse poder de terminar conosco? Na mitologia grega, Moira, no singular, é o destino. Na Ilíada, representa uma lei que paira sobre deuses e homens, e na Odisséia aparecem como fiandeiras. Os poetas da antiguidade descreviam as Moiras como velhas de aspecto sinistro, de grandes dentes e longas unhas. Nas artes plásticas, ao contrário, aparecem representadas quase sempre como lindas donzelas. No entanto, é na fantasmagoria que a inspiração surge nas obras de Pedro de Kastro (Galeria de Arte do Instituto Moreira Sales - Bourbon Shopping Country).

Os desenhos, serigrafias  e gravuras em metal de Kastro, datados entre 1996 e 2007, foram realizados em grandes dimensões (chegam a um metro de largura) e mostram corvos e seres sinistros que, do alto de arranha-céus, desafiam a existência, ao lado de gárgulas aladas. Poucos são os miseráveis que, nos quadros, sobrevivem. As engenhosidades, os aracnídeos mecânicos estão por toda a parte, entre claros e escuros no efeito dos sulcos das tradicionais linhas da gravura.

Obra fantasmagórica, traz máquinas e moinhos modernos, grotescos, iluminados como abóboras em Halloween. Onde o visiante é o intruso, quando o sonho vira pesadelo.

Nas telas, o homem continua fazendo água. Quem se salva aprecia do 45º andar. Mas não escapará de qualquer ataque aéreo. Ninguém está seguro. É o apocalipse. As praças continuam abrigando as catedrais, no entanto as construções já estão cercadas de areia. O sentimento religioso sofre de inanição. No entanto, os templos da fé permanecem de pé ainda que no vazio. Altos prédios ostentam luminosos de grandes empresas, lembrando a prostituição de cada dia.

Onde havia terra, há água; onde havia água, tudo está soterrado.  O tempo é um aracnídeo, que traz no lugar do coração uma grande ampulheta. Em sua volta, não há nada que se mova.  A não ser um avião em fuga e um homem contando as últimas gotas de sangue que pingam de um daqueles sacos dependurados como soros em hospitais. São os sobreviventes. Atmosferas amplas com monolitos ameaçadores e caveiras mostruosas completam o mondo canne do contemporâneo Paulo de Kastro, que acerta em cheio a época de pura destruição de valores.

Um desenho do porto faz Fu Lana reconhecer sua província. Será que todos os portos são irmãos, habitados pelos seres-guindastes-gigantes que se movem sozinhos à noite?

Paulo de Kastro vive em São Paulo, mas nasceu em Lisboa em 1971. Afinal, há vida depois dos anos 60. Traz consigo  o mórbido e, nele, reconhecemos nosso lamento.

Lamento e lápide. Em qualquer lugar. Num mundo vertiginoso. Até aqui, na província. É o mondo canne, que não nos permite a paz.