Goya, o primeiro 4o1c1b

Fu Lana não é especialista em nada. Ela anda pela cidade anotando coisas aqui e ali. Não escreve por prazer, mas por compulsão. Descontenta … 4d73m

12/07/2007 00:00

Fu Lana não é especialista em nada. Ela anda pela cidade anotando coisas aqui e ali. Não escreve por prazer, mas por compulsão. Descontenta uns e outros, porém, quando vai a uma exposição como Goya, tem vontade de gritar: Vale a pena. Vão! E tenta ar algo que referende seu convite. 364v5c

Logo na entrada, a imponência da abertura dá o tom. O povo - mais de 30 mil já viram - está apreciando as obras, fotografando com celulares, acompanhando os sulcos das gravuras com lupas (basta deixar um documento na entrada). O Museu está vivo! Somente um gigante como Goya para trazer um certo ar cosmopolita à província.

Goya nasceu em 1746. Por muito tempo, foi um pintor da nobreza, era pintor da Câmara Real. Fazia retratos, pinturas religiosas e também pinturas que serviriam de base para a Manufatura Real de Tapetes. Mais de 50 obras realizou para serem destinadas ao desenho de tapetes que traziam algo de uma cena pastoral, irreal, bem diferente das cenas do cotidiano. Até mais ou menos os 40 anos de idade, Goya dependia  dos poderosos e assim os retratava. Sua pintura era tecnicamente perfeita, colorida, alegre e jovial. No entanto, aos 46 anos, devido a uma doença, ficou surdo para sempre. A partir daí, torna-se agudo e certamente mais corajoso. Descobre que a pintura de gabinete não trazia comparação com as de encomenda e que, só ali, o capricho e a invenção poderiam se soltar. Foi desta forma que descobriu em sua arte a face trágica da Espanha, a crítica mordaz e uma aventura estética que abriu muitos caminhos. A liberdade sentida por Goya era a mesma liberdade da arte moderna, que se prenunciava através dele.

A coleção de gravuras, pertencente à Caixanova da Espanha, instituição que reverte seu lucro à sociedade por meio de obras de caráter social e cultural, mostra em Porto Alegre exatamente as séries que compõem esse libertar de Goya. Depois do apogeu profissional, onde foi reconhecido como pintor de grande valor e poder, Goya liberta-se e consolida seu repertório. Podemos então acompanhar seus Caprichos, Desastres da Guerra, Tauromaquias e Disparates (ou Provérbios), não exatamente nesta ordem.

A começar pela direita de quem entra, encontraremos Desastres da Guerra, 80 cenas da guerra civil para as quais o pintor dá nomes que, encadeados, são uma narrativa sensível de quem está inconformado e perplexo. Ninguém quer? mas estamos todos lá. Lá onde? Na tragédia que é a existência humana, não só na guerra, mas na sociedade civil. Para isso nascemos? e a gravura traz uma pilha de homens mortos e chorosos. Que coragem? e uma mulher em remendos acende o pavio de um canhão. E não tem remédio? O jeito é enterrar e calar. Não se sabe o porquê das atrocidades, da crueldade de empalarem-se os homens, deceparem-lhes os braços e expô-los a graves humilhações. O socorro não chega a tempo?

emos à série Caprichos, cujas gravuras o pintor põe à venda em uma loja de perfumes em 1799, quando ele já tinha seus 53 anos. Alguns dizem que, na História da Arte, não há exemplo de tal atrevimento na rebeldia contra o meio, contra tudo e contra todos. Goya satiriza e critica os vícios e defeitos da sociedade espanhola, mas Fu Lana lembra ali mesmo, no Margs, do Congresso Brasileiro. Um demônio cortando as unhas dos pés e na legenda, escrita de próprio punho: eles se preparam? Homens carregam burros, um pum atiça o fogo, uma bailarina linda foge, mas não escapará? dos monstros que a cercam, mesmo sendo bela e rica, como nenhum de nós escapará da vida em sociedade.

Na série Tauromaquias, Goya atenta para a tragédia do touro, mas também de seu caçador e algoz quando fracassa, dos cães que se aproveitam. É o sangue em claro-escuro, técnica que Goya trouxe lá de Rembrandt. Traça o destino, o medo e a coragem dos que circulam naquele ambiente. As gravuras são quase daguerreótipos, que fixam para sempre o instante que deveria durar um segundo: o golpe fatal, a cena tensa, o silêncio, e as correrias das arquibancadas. A técnica é impressionante. Com lupa, ou sem.

E Os Disparates (ou Provérbios) são o gran finale, inclusive da vida de Goya. Produziu-as na Quinta do Surdo, como chamavam a seu refúgio os vizinhos. Já tinha então 73 anos. Tal qual Iberê Camargo (que expõe no andar de cima), no final da vida, Goya usava na pintura apenas ocres, negros e brancos, porque na natureza só existem o sol e as sombras. A tragédia da condição humana tem ali sua apoteose. "Dá-me um pedaço de carvão e te darei o quadro mais belo", dizia Goya. Nos Disparates, encontramos o absurdo, o fantástico, mas não o menos fantasmagórico. Trata-se de uma obra de ficção, uma crônica irônica e mordaz, com uma iluminação teatral.

É bom que se diga que, na gravura, o metal é tratado e protegido, e que a ponta seca que nele arranha retira essa proteção. Banhado em ácido, onde fora desenhado, há a corrosão, e sobre a prancha entintada, o papel será pressionado, quando surgirá, nítido, o desenho. Goya é a proteção, a ponta seca, o ácido e a corrosão. Goya é o desenho, e somos cada um naquela exposição. Por isso, ele é universal.