Tudo de novo. Quem inventou o ano novo deve ser um gênio. Me engana que eu gosto, pensava Fu Lana, com o espumante na mão, naquele barzinho de quinta categoria, todo enfeitado com papel alumínio, desses de forno e fogão. Fogão mesmo tomou um moleque recém-saído da infância. Que vida. Começar o ano emborcado sobre o lixo orgânico. Fazer o quê? Pelo menos ela tinha planos: desenhar alguns livros por uns trocados. Vão acabar em sebos, mesmo? puxava para baixo a pobre garota. 1yq4w
O que a salvaria em 2007 seriam suas quase madeixas onduladas e seu sorriso meia-boca. Meia-boca não é forma de expressão, ela sorria mesmo com a metade dos lábios. Sempre pensou ser esquizofrênica por causa desse sintoma, ou até possuir dois lados no caráter também, mas concluiu que era apenas um defeito de fábrica.
O melhor do Natal e do Ano Novo é que essas datas somente se repetiriam dali a doze meses, o que dava e sobrava para preparar uma nova avalanche de esperanças, desejos e uma continuação mesmissimamente igual, senão pior.
Tinha uma amiga que estava sempre tirando de letra essas situações. Enquanto Fu Lana bufava em uma fila de banco enorme para aproveitar as últimas datas do IPTU e IPVA, a amiga lascava uma receita: por isso eu, que paguei tudo dia 26 e na maior calma.
Enquanto Fu Lana queixava-se de presentes que não comprara, festas que não iria e dias em frente à televisão, destino que a esperava no calor da capital gaúcha, a amiga, sorridente, dizia: por isso eu, que não dei nada no Natal, a não ser uma tevê plana, um microondas e umas três camisas caríssimas para meu filho e ainda vou viajar para Goiás e ver a família na Chapada. Não encano com essas coisas, remendava, sempre sorridente. O contraponto de uma pessoa baixo astral só podia ser uma pessoa desesperadamente sorridente.
Mas o ano não começaria tão mal. Por isso colocou a calcinha amarela que a vizinha insistiu para que ela comprasse e a fitinha vermelha que deveria amarrar sabe lá Deus onde, isso sem falar nos grãos de lentilha, nas uvas e nos pulinhos de sete ondas que encomendou a outra conhecida que iria para o clube Geraldo Santana em Tramandaí.
Apesar de todo esse esforço, o mais interessante do dia primeiro foi dividir o controle remoto entre as posses do presidente e da primeira governadora no sul do País. No Distrito Federal, chovia, e a primeira dama era, literalmente, o sol. Trazia o amarelo das rendeiras do Piauí. Fu Lana ficava de olho em Dona Marisa. Lembrava da primeira posse de seu marido, quando em traje vermelho era o símbolo de um desejo ardente do primeiro mandato dos trabalhadores.
Agora, na reeleição, de amarelo van gogh, parecia uma primeira-dama daquelas que tomam chá com as amigas e vão às compras. Apenas um mandato e já está assumida a forma. O mundo inteiro se acostuma. Por que não Dona Marisa? Fu Lana nunca usaria um amarelo tão cheguei, mas que aquela renda fez muito bem ao dia nublado, ah!, isso fez.
No Sul, o tempo estava quente e prenunciava uma tempestade. Em um traje ora azul, ora verde, a governadora derretia-se em discursos nada festivos sob um casaquinho branco de seda pura. Vai ser difícil resolver as questões de Estado, mas igualmente árdua será aquela hora do dia em frente ao armário, para escolher a roupa adequada. Os homens resolvem tudo com calça, camisa, casaco e sapatos pretos, quando muito, escolhem uma ou outra gravata, mas ela terá de compor sapatos, bolsas, blusas, decotes, cores, cabelos, unhas? Mulheres? Sempre pensando em bobagens. E assim se arrastou o primeiro do dia de Fu Lana em 2007. Sozinha, tergiversando sobre amenidades, no escurinho da sala, com os pés para cima.
Ótima notícia! Estão chegando ao Brasil novos filmes candidatos ao Oscar. Este é outro evento que alimenta a tolerância ao cotidiano: o cinema e suas grandes obras. Como é que não esgotam as boas idéias? Que venha 2007.
Fu Lana ainda está tentando entender a soma do novo ano: dois e sete, nove; noves fora: zero. É o ano do início. Da partida em zero. Como sempre, aliás.