Um tapa na cara

De Christian Jung, para o Coletiva.net

Há muito tempo, quando eu ainda era criança, aprendi diretamente o significado da falta de limites. Durante vários anos fui colega do Andrea Luigi, no Colégio Rosário, aqui em Porto Alegre. O nome dele chamava a atenção da turma porque parecia feminino, o que, para nós, na sala de aula, era motivo de piada - santa ignorância. Andrea, de origem italiana, tem raiz no grego Andréas, que significa "homem", "másculo" ou "corajoso". Depois de esclarecida a dúvida, o nome não deveria mais ser motivo de brincadeiras.

Andrea era um grande amigo, parceiro em todas as atividades, fosse na sala de aula ou no pátio da escola. Mesmo sendo tão próximo a ele - e talvez justamente por isso - não perdia a oportunidade de chamá-lo de "Andrea, o Mafioso". Era uma referência à máfia, organização criminosa que surgiu na Itália, no século XIII, expressão que usamos para associar alguém ao crime organizado.

Quando somos jovens, conseguimos ser bons e cruéis ao mesmo tempo. O bullying corria solto naquela época, como corre ainda hoje - a diferença é que agora tem nome próprio e reconhecemos o mal que faz. Em um desses dias, em que eu achava divertido intimidar ou diminuir a autoestima do colega e amigo, chamando-o de "Mafioso", recebi um tapa próximo à orelha que me deixou sem reação. Naquele instante, compreendi claramente que tudo que eu dizia ou fazia tinha limites.

Fiquei mudo e dolorido, enquanto via Andrea se afastar pelo portão da escola, vermelho, como alguém que precisou atingir um limite extremo para mostrar até onde podemos ir. Na minha cabeça, aquilo não ava de brincadeira. Em nenhum momento havia imaginado o peso que a palavra "mafioso" tinha para ele, especialmente vindo de uma família com forte raiz italiana. Não percebia o quanto isso o incomodava.

Nada mudou entre nós. Nossa amizade continuou igual, mas algo se transformou dentro de mim. Para Andrea, aquele tapa foi libertador. Éramos crianças e nunca mais tocamos no assunto. Porém, ei a entender que nem tudo que pensamos deve ser dito, e que é preciso saber bem sobre o que falamos para não ofender. Aprender a estabelecer limites é um ato de respeito consigo e com os outros.

Terminada a etapa das séries iniciais, nunca mais vi Andrea, mas a lembrança do tapa e da lição aprendida retorna sempre que começam as discussões sobre limites nas redes sociais. O que para muitos parece uma máscara de censura está diretamente relacionado à falta de limites. Nas relações interpessoais - sejam elas profissionais, pessoais ou familiares -, nossas atitudes sempre terão consequências imediatas. Ninguém a ileso!

Não sou da área jurídica, tampouco defendo censura, mas o mundo virtual, por mais fascinante que pareça, reflete exatamente o que somos aqui fora, na sociedade.

Como afirmou o sociólogo Zygmunt Bauman ao jornal El País: "As redes sociais não ensinam a dialogar porque é muito fácil evitar a controvérsia? Muita gente as usa não para unir, não para ampliar seus horizontes, mas ao contrário, para se fechar no que eu chamo de zonas de conforto, onde o único som que escutam é o eco de suas próprias vozes, onde o único que veem são os reflexos de suas próprias caras. As redes são muito úteis, oferecem serviços muito prazerosos, mas são uma armadilha."

No mundo real, as respostas às nossas ações chegam quase imediatamente. No virtual, porém, ainda tem muita gente precisando levar um tapa na cara - de forma figurada, claro!

Christian Jung é publicitário, locutor e mestre de cerimônias.

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